Crise empurra crianças ao mercado de trabalho

A legislação brasileira proíbe adolescentes com menos de 16 anos de idade de desempenharem atividade profissional, a não ser na condição de aprendizes e a partir dos 14. Dos 16 aos 18 anos, os jovens podem trabalhar com carteira assinada, desde que não à noite. Entretanto, apesar da determinação, é grande o número de jovens desempenhando trabalhos impróprios à idade.

Neste mês, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) divulgou um estudo que mostra que, em 2002, havia no Brasil 155 mil adolescentes de 14 e 15 anos trabalhando, e 268 mil na faixa etária entre 16 e 17 anos. No Paraná, em 2003, de acordo com a Delegacia Regional do Trabalho (DRT), foram encontrados 203 jovens entre 14 e 16 anos desempenhando atividade profissional e 428 entre 17 e 18 anos. Os empregadores foram punidos com multa de acordo com o número de menores trabalhando e adolescentes com mais de dezesseis anos não registrados em carteira.

O chefe da fiscalização da DRT, Luiz Fernando Busnardo, explica que o que está por trás do trabalho na adolescência é um grave problema social. Geralmente, os adolescentes começam a desempenhar atividades profissionais para ajudar os pais, que não ganham o suficiente para sustentar a casa. Estes, passando por necessidades, não se conscientizam que o trabalho é inadequado à fase da vida dos filhos e até os incentivam a continuar: “O adolescente normalmente é tido como mão-de-obra barata, ganhando bem menos que o trabalhador adulto e desempenhando as mesmas atividades”, comenta o chefe da fiscalização. “Já deparei com meninos e meninas ganhando R$ 3 ou até menos para trabalhar o dia todo, lidando com animais no campo, em carvoarias e em outros ambientes pouco saudáveis para a idade.”

Prejuízo

Luiz Fernando acredita que o trabalho pode prejudicar o desenvolvimento do adolescente como pessoa, pois na maioria das vezes ele deixa de realizar atividades lúdicas para se dedicar à atividade profissional. A evasão escolar é uma das principais conseqüências. A maioria dos jovens que trabalha deixa de freqüentar a escola por falta de tempo ou por se sentir cansada demais para assistir às aulas. Os que não abandonam os estudos, acabam não tendo um bom desempenho, por não conseguirem se concentrar de forma adequada e por não terem tempo livre para fazer os deveres de casa.

Para adultos, trabalho amadurece

Muitos dos adultos de hoje começaram a trabalhar na adolescência. Com experiências diferentes, alguns acham que deixaram de aproveitar de forma adequada uma fase importante da vida. Já outros acreditam que o trabalho contribui de maneira positiva para o próprio crescimento e para a aquisição de responsabilidades.

A auxiliar de escritório Sílvia Helena Pereira Reis, atualmente com 47 anos, começou a trabalhar aos 14 anos de idade, quando se mudou do município de Ourinhos, em São Paulo, para Curitiba. Seu primeiro emprego foi como auxiliar de serviços gerais em uma distribuidora de relógios. Ela permaneceu no lugar por três anos, indo na seqüência trabalhar como recepcionista em uma clínica de fraturas. “Eu trabalhava o dia inteiro e estudava à noite, ajudando a pagar a escola e as despesas de casa”, conta. “Era puxado, mas acho que o trabalho só me fez bem, contribuindo para que eu amadurecesse, tivesse responsabilidade e não pensasse em besteiras.”

A estudante Inês Dumas, que tem 26 anos e no final deste ano estará formada em Jornalismo, também começou a trabalhar aos 14. Com essa idade, ela deixou a casa da mãe no município de Mal-let, na região Centro-Sul do Estado, e veio para Curitiba com o objetivo de dar prosseguimento aos estudos. “Para me manter em Curitiba, comecei a trabalhar de babá na casa de uma prima. Eu morava na casa dela, cuidava de sua filha durante o dia e à noite fazia supletivo”, lembra.

Inês foi babá durante seis meses, posteriormente trabalhou como atendente em uma editora e no setor de compras de uma construtora. A jovem diz que foi graças ao próprio trabalho que hoje está prestes a realizar o sonho de se tornar uma jornalista: “Sempre quis estudar Jornalismo e sabia que minha família não poderia pagar a faculdade. Então tive que começar a me virar”, diz. “Trabalhar cedo fez com que eu desse mais valor ao que eu tinha, pois passei a saber o quanto era difícil ganhar dinheiro.”

Ofícios podem gerar danos físicos e traumas

Algumas atividades podem gerar tanto prejuízos físicos quanto psicológicos aos adolescentes. Meninos e meninas obrigados a desempenhar tarefas superiores às suas capacidades – sejam elas carregar peso, ficar acordado durante a madrugada ou agüentar pressão por parte de patrões – podem sofrer as conseqüências durante toda a vida adulta.

O médico ortopedista do Hospital de Clínicas (HC) da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Gabriel Paulo Skroch, revela que na adolescência os ossos ainda estão em crescimento, e uma sobrecarga de atividades físicas pode resultar em deformidades: “Os músculos dos adolescentes também ainda não possuem crescimento normal e total potência, não estando completamente desenvolvidos”, comenta. “Como o crescimento dos ossos é mais rápido que o dos músculos, uma sobrecarga pode resultar em encurtamento fisiológico dos músculos em relação aos ossos.”

Sendo assim, o trabalho pesado pode gerar agressões ao aparelho locomotor, alterações de crescimento, distensões e rupturas musculares, deformidades como dorso curvo e desgaste precoce das articulações, podendo levar a artroses. “Muitos desses problemas irão se manifestar apenas quando o adolescente chegar à vida adulta.”

Traumas

No que diz respeito aos prejuízos psicológicos, o psicólogo e professor da Universidade Tuiuti do Paraná, Raphael Henrique Castanho Di Lascio, explica que geralmente os pensamentos e reações de um adolescente ainda são os mesmos de uma criança. Por isso, os jovens não estão preparados para suportar as cobranças, responsabilidades, limites de tempo e pressões impostas pelo ambiente de trabalho.

“O adolescente ainda está em formação e, por isso, passando por processos de educação. Ele precisa ter direito de estudar e executar atividades lúdicas relativas à sua idade”, afirma. “Assumir a responsabilidade de ter que trabalhar e ajudar no sustento da família muito cedo pode gerar medos, angústias, estresse, agressividade e dificuldades de relacionamento.”

Guarda Mirim é uma alternativa

Para tirar os adolescentes curitibanos em situação de risco da ociosidade e ao mesmo tempo evitar que eles acabem aderindo a atividades profissionais irregulares e que possam vir a prejudicar seu desenvolvimento, a Guarda Mirim vem desenvolvendo cursos de formação de aprendizes.

A partir dos 14 anos, os adolescentes podem entrar para a Guarda e escolher entre os dois cursos oferecidos: Comercial, no qual aprenderão sobre vendas, gestão, cidadania, informática, entre outras coisas; e Administrativo, que inclui planilha de contabilidade, recursos humanos, ética e informática.

No primeiro ano na instituição, o jovem é preparado para poder atuar dentro de uma empresa. A partir do segundo, se torna efetivamente um guarda mirim, podendo atuar como aprendiz dentro de uma empresa conveniada com a Guarda por um período de até dois anos. Eles podem integrar o projeto de aprendiz até completarem 18 anos, quando podem vir a ser contratados pela empresa na qual atuam. “Atualmente, trabalhamos com 1.259 adolescentes e temos convênios com diversas grandes e pequenas empresas para que os jovens possam passar pelo processo de aprendizagem”, conta o diretor da Guarda Mirim, Nivaldo Vieira Lourenço. “Nas empresas, os adolescentes recebem uma bolsa mínima de R$ 212,48 por mês, alguns recebem vales-transporte e alimentação. Eles ficam nos locais por quatro horas, por cinco dias úteis, tendo tempo para estudar.”

Supervisão

Todas as atividades desenvolvidas pelos jovens dentro das empresas que os aceitam como aprendizes são supervisionadas por assistentes sociais. Isso evita que eles façam trabalhos irregulares ou sejam vítimas de sobrecarga.

Caravana reuniu 2 mil crianças

Cerca de duas mil crianças e adolescentes de escolas públicas de Curitiba e Região Metropolitana se reuniram ontem para discutir sobre a erradicação do trabalho infantil. O evento faz parte da caravana nacional que debate o assunto em todo o País. No final do dia, elas elaboraram uma carta aberta, que será entregue amanhã ao governador do Estado do Paraná, Roberto Requião.

Estima-se que existam 2,9 milhões de crianças e adolescentes entre 5 e 15 anos trabalhando no Brasil. A lei permite que uma pessoa arranje emprego a partir dos 16 anos. Os alunos foram divididos em 40 grupos de discussão, que trabalharam no Colégio Estadual do Paraná. Cada um abordou temas diferentes, como o trabalho infantil propriamente dito, a exploração sexual, a violência, cultura de paz e prevenção às drogas, totalizando vinte assuntos.

No final do trabalho, cada grupo fez uma proposta para solucionar o problema. Das 40 sugestões, vinte estão na carta que será enviada ao Palácio Iguaçu. “O governador Requião também assinará um termo de compromisso com essas crianças para acabar com o trabalho infantil”, comenta Isa Maria de Oliveira, secretária executiva do Fórum Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil, organizador do evento juntamente com a Polícia Militar.

A discussão sobre o tema faz parte da Caravana Nacional pela Erradicação do Trabalho Infantil, que começou no dia 12 de junho no Rio Grande do Sul, já passou por Santa Catarina e chega amanhã ao Paraná. Durante cinco meses, serão promovidos encontros em todas as capitais brasileiras com grupos de adolescentes.

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