O tempo do nosso tempo

O New York Times publicou na edição de ontem reportagem sobre Norman Mailer, que faz 80 anos no fim do mês. Ele foi o mais polêmico escritor norte-americano da segunda metade do século 20. Um talento não correspondido em obras, língua ferina, maluco de pedra; chegou a se candidatar a prefeito de Nova York, em 1969. Destes que não existem mais, coragem moral, intelectual e física suficiente para enfrentar o sistema. O dele, nos EUA, que é mais difícil porque mais opulento. Hoje há gatos pingados, como Noam Chomski, todos perto da faixa etária de Mailer. Este escreveu livros ruins para pagar pensões às ex-mulheres. Teve seis, incluindo a atual, Norris Church.

E teve uma boa prole, nove filhos, oito netos. Achava besteira casar e não ter filhos. Ou, perda de tempo. Neste caso se parece um pouco com outro ícone americano, Marlon Brando, de prole imensa, ex-mulheres, e talento para provocar. Ambos, Leões de Inverno, como se diz no Hemisfério Norte. Mailer, para andar, se apóia em bengala.

Mas não perdeu a fonte de seu veneno: “Eu classificaria a mim e a metade das pessoas que eu conheço como mal-intencionados. Apostadores. Simplesmente aumentando a aposta”. Autopiedade não é com ele. Com Os Exércitos da Noite, feito no calor dos protestos em Washington contra o Vietnã, escreveu o que se pode chamar de uma grande reportagem, talvez seu último grande livro. Paulo Francis disse certa vez que deve ser terrível chegar aos 80, principalmente homens tão ativos e tão próximos da fogueira do poder e da fortuna como Mailer, e olhar ao lado e ver que não há amigo, quase todos morreram e o que resta é mediocridade e mesquinharia.

Não reclama do lixo. Sabe que é o que há. Ele sabe que não há mais literatura, há comércio e o comércio brinca, não aposta em riscos. James Joyce hoje em dia estaria filando drinques em boteco de esquina, que ia apostar “naquilo” a que chamou Ulisses. Mailer compara o escritor ao esportista. “As pessoas estão sempre reclamando nos esportes sobre quanto dinheiro esses atletas recebem.” “Pelo menos os atletas podem responder: ?Estou recebendo esse dinheiro porque sou o melhor no meu campo?. Na literatura é exatamente o oposto. É a mediocridade que gera grandes somas. Isso sempre foi verdadeiro até um certo ponto, mas se intensificou muito”. Basta ir à livraria mais próxima.

Além da mediocridade, ele percebe que os grandes homens de seu tempo se foram, sem sucessores. Os que aparecem não têm a mesma estatura para ocupar o espaço vago. E isto não é praga da literatura. Em tudo, menos no comércio. Ao contrário do que disse Lavoisier, os dias atuais demonstram que a natureza não abomina o vazio. No lugar de Henry Ford ou Guglielmo Marconi sempre haverá um Bill Gates ou Steve Jobs, entre outros, porque a sociedade não prescinde de novidade no comércio. Mas quem sucede a Picasso ou Matisse, Sartre ou Marcuse, Freud ou Jung, Buñuel ou Bergman, Brecht ou Becket, Yeats ou Auden? O que se quer dizer, homens da mesma dimensão no campo em que atuaram? Eles não tem sucessores, e se transformam em objetos de uma religião estranha de arqueólogos que lhes atribuem intenções que jamais suspeitaram. Pobre Mailer, para quem viu brilhos tão cintilantes, o seu tempo de agora deve ser tedioso. Talvez, sufocante.

Edilson Pereira (edilsonpereira@pron.com.br) é editor em O Estado.

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