O princípio da dignidade da pessoa humana e o artigo 54, parágrafo único, da Lei 11.101/05

A Lei 11.101/05, que trata da recuperação judicial, extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, contém vários princípios deveras importantes. Tendo em vista a ordem constitucional instaurada a partir de 1988, é de serem considerados, também em sede de falência e recuperação, todos os princípios advindos com a Constituição Federal. Nesse passo, impende destacar, especificamente, uma questão deveras importante, e que diz com o procedimento da recuperação judicial. Um primeiro parêntesis é de ser feito desde logo. Várias respostas a questionamentos hoje formulados no tocante ao processo de recuperação, somente poderão ser dadas a contar do encerramento do feito, e passados alguns anos, depois que a entidade retorne ao mercado competitivo. O principal, e que mexe com todos aqueles que lidam com o direito falimentar, e também os empresários de uma forma geral, se refere a: o processo de recuperação, de fato, é um mecanismo eficiente (e aqui afasta-se a idéia de eficácia), para o soerguimento daquela empresa em crise? Só o tempo para dar a resposta. Mas, desde logo, cabe especular a respeito, pois os casos de recuperação mais rumorosos, que mais apareceram (e aparecem) na mídia, especialmente daquelas empresas sediadas no Brasil, muitas vezes acabam por sacrificar os direitos daqueles que mais contribuíram para o regular desenvolvimento da atividade da empresa: refiro-me aos trabalhadores (prefiro o vocábulo ?colaboradores?) da entidade. Sabe-se que o princípio da dignidade da pessoa humana, constante do artigo 1.º, inciso III, e também presente no artigo 170 (especialmente na esfera da atividade econômica), da Constituição Federal, é considerado como o ?princípio supremo no trono da hierarquia das normas? (1). E o prof. Ingo W. Sarlet assevera que ?o princípio da dignidade da pessoa humana como, de resto, os demais princípios fundamentais insculpidos em nossa Carta Magna acaba por servir de referencial inarredável no âmbito da indispensável hierarquização axiológica inerente ao processo hermenêutico-sistemático, não esquecendo – e aqui adotamos a preciosa lição de Juarez Freitas que toda a interpretação é sistemática ou não é interpretação?(2). Muito embora ainda inexista um formal conceito, de senso comum, do que venha a ser a ?dignidade da pessoa humana? o mesmo prof. Sarlet entende que é a ?qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos? (3). Trazendo o princípio da dignidade da pessoa humana para o ambiente da recuperação judicial, tem-se que o artigo 54 e seu parágrafo único, da Lei 11.101/05, estabelece, em linhas gerais, que cabe ao ente recuperando elaborar seu plano de soerguimento, e que não poderá prever prazo superior a um ano para liquidação dos créditos trabalhistas ou mesmo os decorrentes de acidentes de trabalho, vencidos até a data do pleito da recuperação em juízo. E mais ainda: o plano não poderá prever prazo superior a trinta dias para o pagamento, até o teto de cinco salários mínimos por trabalhador, dos créditos de natureza salarial, vencidos nos três meses imediatamente anteriores ao pedido de recuperação em juízo. Diante de tal texto legal (e aqui ainda não se está a falar em norma, tal como pondera o prof. Eros Grau), tem-se que é imperioso o cumprimento, por parte daquele que pretende se valer da tutela estatal, das obrigações perante os colaboradores. Caberá, então, ao juiz condutor do processo, ao administrador judicial, e ainda ao próprio comitê de credores, fiscalizar a respeito do cumprimento do artigo 54 da citada lei. Impera destacar, na linha de raciocínio até aqui desenvolvido, que, deixando de observar o contido no citado dispositivo legal, poderá a entidade recuperanda ser responsabilizada, não só com base no art. 73, inc. IV do diploma legal ora em exame, mas também e principalmente pelo fato de que não observou o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. E por que de tal asserto? Há de ser respeitada, primordialmente, a dignidade do trabalhador, aquele que ajudou a entidade a buscar lucros (não no esqueçamos que o mundo está em período de globalização capitalista), e, deixando de receber os valores que lhe são legitimamente devidos, poderá (em tese) este mesmo trabalhador deixar de lado (não por vontade própria) algumas necessidade básicas. A impossibilidade de prover a subsistência básica do trabalhador, somada ao fato de que o não pagamento de valores devidos, e que devem ser pagos, segundo consta do artigo 54, poderá acarretar ao trabalhador uma existência não digna, certamente que estamos diante de afronta ao princípio constitucional ora analisado. E mais ainda: O não pagamento das verbas devidas ao trabalhador, poderá também (em tese, e dependendo da análise do caso concreto), fazer com que não tenha ele (ou sua família) o direito a uma vida digna. A privação de necessidades mínimas indispensáveis à própria subsistência do trabalhador (e de seus dependentes diretos) poderá ocorrer caso não seja ele pago em conformidade com a lei em comento. Nessa perspectiva, sendo um bem jurídico inalienável e intangível, a dignidade da pessoa humana, em sendo analisada sob o prisma do artigo 54, poderá ser ferida de morte, caso inexista o cumprimento das obrigações assumidas pela entidade recuperanda.

Notas

(1) Por todos, Prof. Paulo Bonavides, em prefácio da obra do Prof. Ingo Wolfgang Sarlet, Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988, Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 4.ª ed. 2006.

(2) Op. cit., p. 80.

(3) Op. cit., p. 60. Cabe aqui sinalar que, na linha de Kant, quando a coisa tem preço, outro pode ser equivalente, mas quando não se pode mensurar, quando a coisa está acima de todo e qualquer preço, aí estar-se-á diante da dignidade.

Carlos Roberto Claro é professor assistente de Direito Societário e Falimentar das Faculdades Integradas Curitiba, mestrando em Direito pela mesma instituição de ensino, e membro do American Bankruptcy Institute.

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