O Direito Penal e a Bioética: Exemplos destacados (IV)

 

 

  Artigo desenvolvido pelo grupo de pesquisa em Bioética e Direito Penal da Famec, sob orientação da Profª M. Ana Carolina Elaine dos Santos. Integrantes: Giovana de Mello Morillas, Sandra Cordeiro Bastos, Marcelo Schetz, Francielli Araújo Veiga, Genésio Aires de Siqueira, Diana Thais Fuchs e Marilda Lima.

  

Procurar-se-á expor de forma breve e sintética a repercussão da bioética nas questões relacionadas ao Direito Penal, elencando alguns temas polêmicos que servem de ponto de partida e nos remetem a uma reflexão mais profunda.

 

Aborto

Por aborto entende-se a conduta de colocar fim à gravidez antes do tempo normal de gestação. Ou seja, é interromper o processo de gestação através da morte do feto.

Para Bitencourt[1] “aborto é a interrupção da gravidez antes de atingir o limite fisiológico, isto é, durante o período compreendido entre a concepção e o início do parto, que é o marco final da vida intra-uterina”.

Segundo Mignon[2], o aborto surge no latim abortus e significa privação do nascimento: “aborto é a interrupção da gravidez com a morte do feto fruto da concepção antes que chegue à normalidade, podendo ocorrer durante todo o processo fisiológico da prenhez, isto é, desde a implantação do ovo no útero até o início do parto”. [3]

Classifica-se o aborto da seguinte forma: o natural ou espontâneo e o provocado que pode ser acidental, legal, sentimental, eugenésico, social, químico e científico[4].

No Brasil, o aborto encontra tipificação no Código Penal, em seu artigo 124, “in verbis”:

 

Art. 124 – Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque:

Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos.

Aborto Provocado por Terceiro

Art. 125 – Provocar Aborto, sem o consentimento da gestante:

Pena – reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos.

Art. 126 – Provocar Aborto com o consentimento da gestante:

Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos.

Parágrafo único – Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de 14 (quatorze) anos, ou é alienada ou débil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência.

Forma Qualificada

Art. 127 – As penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas de um terço, se, em consequência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal de natureza grave; e são duplicadas, se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevém a morte.

Art. 128 – Não se pune o Aborto praticado por médico:

Aborto Necessário

I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante;

Aborto no Caso de Gravidez Resultante de Estupro

II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

 

O bem jurídico tutelado é o ser humano em formação – feto ou embrião – e quando praticado por terceiro, protege-se também a incolumidade da gestante[5].

O Código Penal brasileiro excluiu duas possibilidades na qual a prática do aborto não é considerada crime: casos onde a vida da gestante corre risco e, aplicando-se a excludente do estado de necessidade, prevalece a vida da mãe sobre a do feto; e o aborto sentimental, ou seja, casos onde a gravidez é fruto de violência sexual.

Entretanto, o Código Penal silencia quanto à possibilidade da realização do aborto quanto se trata de embrião com anomalia incurável, que faz com que o feto nasça morto ou morra logo em seguida do parto. Não há previsão legal no sentido de ser garantida a gestante a autonomia para decidir se deseja levar adiante uma gravidez de um feto anencéfalo, que não apresenta nenhuma perspectiva de vida digna tanto intra quanto extra-uterina. A autonomia privilegiada no Código Penal restringe-se tão somente no caso de ser a mulher vítima de crime sexual e, nesta hipótese, nem se indaga quanto à boa ou má formação do feto, ou se oferece ou não condições de vida plena após seu nascimento.

Vieira[6] se posiciona no sentido de que deve ser respeitada a mulher e sua autonomia. Aduz que o direito penal de 1940 não condiz com a realidade; que a legislação deveria ser revista já que não chega aos tribunais o aborto como crime, apenas como pedido de interrupção de uma gravidez onde não há possibilidade de levar adiante um feto que não tem qualquer chance de vida extra-uterina. Adverte, “cumpre ressaltar que é habitual ocorrer o encaminhamento a um serviço especializado para a confirmação. Neste caso, a decisão deve caber principalmente a mulher e ao marido, com o aval dos médicos. Ademais, os princípios bioéticos da autonomia, da beneficência e da não-maleficência devem ser respeitados. Os médicos que realizam a interrupção nestes casos estão respeitando a autonomia da mulher, causando-lhe um bem, sem fazer mal ao feto, pois este morto já está, infelizmente”[7].

Almeida[8] posiciona-se no mesmo sentido: “o direito à vida e à liberdade, garantidos constitucionalmente, devem prevalecer à mulher haja vista o feto não gozar de vida plena, mas em formação”.

A questão do aborto está indubitavelmente ligada às questões de ordem bioéticas e a aplicação e/ou reconhecimento de seus princípios na prática forense.

 

Eutanásia

Oriunda do grego euthánatos – eu que significa bem, mais thánatos, que quer dizer morte – a eutanásia é um tema também polêmico que não encontrou ainda uma conclusão pacífica[9].

            Leite[10] leciona que “atualmente, a eutanásia propriamente dita, é denominada morte misericordiosa ou piedosa, e é inferida a uma pessoa que sofre de uma enfermidade incurável ou muito penosa, visando suprimir a agonia lenta e dolorosa. Inspirada na piedade ou compaixão pelo doente, não se propõe a puramente causar a morte”.

O nosso Código Penal não tipifica a conduta eutanásica, limitando-se a “encaixá-la” no tipo de homicídio privilegiado, previsto no Art. 121, parágrafo 1º. 

Art. 121 – Matar alguém:

Pena – reclusão, de 6 (seis) a 20 (vinte) anos.

Caso de Diminuição de Pena

§ 1º – Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.

 

Neste passo, o entendimento é que a “eutanásia pode ser considerada, na melhor das hipóteses, como uma prática de relevante valor social ou moral”[11].

Importante ressaltar que existiu a defesa de implantação no Anteprojeto do Código Penal a previsão da eutanásia e da ortotanásia – entende-se esta como a renúncia a recursos extraordinários, capazes de possibilitar um prolongamento precário e penoso da vida, sem interrupção dos cuidados normais (ordinários) devidos ao doente em casos semelhantes. – prevendo para a eutanásia uma pena menor (de quatro a dez anos de prisão) e para a ortotanásia isenção de responsabilidade penal do médico [12].

Entretanto, aguarda-se uma nova proposta de reforma da parte especial do Código Penal com a esperança de ser regulamentado o assunto, reconhecendo ao paciente e a seus familiares o consentimento esclarecido e exaltando o princípio da autonomia privada.

O tema requer cuidadosa análise dos princípios da dignidade da pessoa humana e sua relação com a existência digna, bem como a prevalência ou não dos princípios da autonomia e do consentimento informado.

 

Transplantes de Órgãos

Desde o primeiro transplante de córneas em 1880 até os dias atuais, considera-se a matéria uma das maiores descobertas da medicina. Mas da mesma forma com que evolui, parece ficar mais distante a realidade para os necessitados na medida em que há dificuldade no abastecimento de órgãos[13].

Diante desta necessidade e diante do avanço biotecnológico que permitiu este procedimento criou-se a Lei 8.489/92, regulamentado a questão da doação voluntária de órgãos. Assim, em nome da autonomia e do consentimento se “estimulou o doador em potencial a declarar em documento adequado a intenção da doação e quando isto não ocorresse, a família teria o poder de decidir sobre o destino de seus órgãos[14]“.

Posteriormente foi criada a Lei 9.434/97 que estabeleceu o princípio da doação presumida, sendo esta parcialmente alterada pelas Leis 10211/01 e 11521/07, criando vários tipos penais autônomos, incriminando condutas antiéticas que regulam “a remoção e transplantes de tecidos, órgãos ou partes do corpo de pessoa ou cadáver; impossibilidade do comércio e publicidade por particular; forma de consentimento e forma de recomposição e entrega de cadáver”[15].

Importante notar que esta lei trouxe a definição do momento de morte, reconhecendo esta quando há cessação dos impulsos cerebrais: “a morte encefálica é a ausência total das funções cerebrais, coma irreversível, apnéia e reflexos e, neste caso, a Lei 9434, de 1997, em território nacional, permite a retirada de órgãos, tecidos e partes do corpo humano”[16].

Nesse sentido Almeida[17] adverte que a mudança de critério para se estabelecer o momento da morte revela, antes de tudo, a evolução na área biotecnológica e a possibilidade que se abriu de novas práticas terapeutas, mas sempre com a observância aos princípios da bioética e o respeito à dignidade da pessoa humana.

Esses são apenas alguns exemplos de temas de Direito Penal diretamente relacionado à evolução biotecnológica. Tais polêmicas convidam a uma análise mais detida e profunda sobre os limites da intervenção do Estado, tanto na esfera da evolução médico científica, quanto nas liberdades individuais.

 


[1] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, 2: parte especial: dos crimes contra a pessoa. 11ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 159.

[2] ALMEIDA, Aline Mignon de. Bioética e Biodireito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, p. 139.

[3] Idem. p. 140.

[4] Idem. p. 139.

[5] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, 2: parte especial: dos crimes contra a pessoa. 11ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 159.

[6] VIEIRA, Tereza Rodrigues. Bioética: Temas Atuais e seus Aspectos Jurídicos. Brasília: Consulex, 2006, p. 50-51.

[7] Idem. p. 50-51.

[8] ALMEIDA, Aline Mignon de. Bioética e Biodireito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, p. 147.

[9] Idem. p. 147.

[10] LEITE, Maria Celeste Cordeiro. Equilíbrio de um pêndulo: bioética e a lei: implicações médico-legais. São Paulo: Ícone Editora, 1998, p. 104.

[11] SAUWEN, Regina Fiuza.; HRYNIEWICZ, Severo. O Direito “In Vitro” Da bioética ao Biodireito. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, p. 135.

[12] Idem. p. 136.

[13] Idem. p. 137-138

[14] Idem. p. 1127

[15] CARNEIRO, Eliana Faleiros Vendramini. Transplantes de Órgãos. Lei 9434/97. In: Legislação criminal especial. Org. Luiz F

[16] KOVÁCS, Maria Júlia. Bioética nas questões da vida e da morte. Revista de psicologia da USP. Psicol. USP vol.14 n.2 São Paulo  2003. Disponível em http://dx.doi.org/10.1590/S0103-65642003000200008.

[17] ALMEIDA, Aline Mignon de. Bioética e biodireto. p. 93-94.

 

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