Música e a leitura na dimensão do tempo

Encontrei na coluna de Álvaro Pereira Júnior, no caderno ?Folhateen?, do jornal Folha de S. Paulo, em edição de 24 de julho passado, um breve comentário, intitulado ?Só tiozinhos ainda compram CDs?. Com ironia e um certo desencanto (aliás, os dois andam sempre juntos), o colunista se baseou em pesquisa divulgada pelo The New York Times para concluir que ?as lojas de discos estão ficando grisalhas. Os clientes já passaram dos 40 e não estão atrás de novidades, mas de sons de seu tempo?. O fenômeno não é recente, mas vem progredindo assustadoramente. Os sons de nosso tempo atual dispensam a loja de discos: transitam na internet. Incorporaram-se a nosso vocabulário termos como MP3 e IPod, que aceitam a chegada e inclusão de sempre novos modelos e aparelhos, com seus nomes de ficção científica e poderes sempre amplos e sedutores.

De música entendo pouco (como de tudo o mais), embora ouça muito, com ela me emocione e passe a pensar sobre certas idéias a partir dela. De tecnologias de captação e gravação de canções, nada entendo. No entanto, ao ler o comentário de Pereira Júnior não pude fugir à associação com o público freqüentador de livrarias. Sempre em menor número, com certeza.

A música ocupa substanciais fatias de tempo no dia de qualquer pessoa. O que não acontece com a leitura, sem a qual as pessoas passam dias, anos, às vezes a maior parte de sua vida, quando não sua totalidade. É possível argumentar que a música não impede outras ações físicas. Posso muito bem trabalhar e produzir, com música ao fundo. Já a leitura é mais exigente: ler é para dentro. Dispensa a maioria dos outros fazeres físicos. Não se consegue simultaneamente ler e andar de bicicleta, ler e conversar, construir uma parede enquanto se lê, atender um cliente ou costurar com os olhos concentrados numa página escrita.

No entanto, ao entrar em livrarias sinto-me a ?tiazinha? do comentário de Pereira Júnior. Poderia baixar certos textos da internet, poderia fazer uma fotocópia do texto integral, mas onde ficaria a sensação tátil do peso, da textura da capa, da espessura das folhas? Os olhos não poderiam viajar tão prazenteiros numa cópia em xerox, que, mesmo próxima da página do livro, ainda guarda manchas, cheiros e enquadramentos denunciadores da substituição. Nem me demoro a pensar na leitura na tela do computador, mesmo porque ler na tela, numa posição corpóreo-visual permanente, abala e desassossega o corpo. Sou mesmo tiazinha: vou à livraria na busca do som de meu tempo. Mas ao mesmo tempo não sou a tiazinha: porque, diferentemente dos CDs, vou em busca das novidades.

Quero a atualidade da nova edição do livro que já possuo, às vezes em primeira edição. Quero saber como é a nova, se tem um prefácio diferente, se traz novas ilustrações. Mesmo que seja para, ao final de apressada conferência, chegar à conclusão que a minha primeira, velha e usada edição é melhor. O que, confesso, tem sido uma conclusão cada vez mais rara, dada a qualidade e os recursos utilizados para atrair o consumidor, mesmo aqueles leitores que já possuem outra edição.

Também busco as novidades dos autores do tempo atual. Embora reconheça, em muitas oportunidades, que hoje se publicam muitos livros de falsa qualidade literária. Um pouco como justificou o escritor Nick Tosches, autor de A última casa de ópio, ao tratar do conceito de arte em entrevista recente: ?Arte é uma palavra besta. Há muito tempo, homens pintavam imagens em cavernas. Hoje, as chamamos de arte. Para eles, era magia. Agora não temos quase nenhuma magia, e tudo é chamado de arte. O pior cantor de música pop é agora um ?artista?. De novo, ?arte? se torna uma categoria sem significado?. Esse sarcasmo, aplicado à música, vale também para a literatura. Escritores são considerados gênios já no lançamento do primeiro livro. Dalton Trevisan destruiu os seus, consciente de que a literatura é amadurecimento da escrita e da cosmovisão.

Embora as palavras se desgastem com o tempo e com o uso abusivo e inadequado, mesmo assim permanecem as idéias que elas um dia representaram. Bernardo de Carvalho, em ?Robespierre e eu?, crônica publicada também na Folha de S. Paulo, trata desse comportamento e atributo pejorativo de ?tiozinho?, de uma outra maneira. Ele usa o termo cânone, entendido como a literatura moderna que se tornou modelo para o resto do mundo, comprovada na obra de Proust, Conrad, Kafka, Joyce e outros.

Quando confrontado com um jovem, que despreza esse cânone, Bernardo de Carvalho propõe a união entre o atual e a herança cultural, definindo a escrita artística como ?uma literatura que rompe com o que seus contemporâneos (o aluno e eu) esperam e exigem dela, e se recusa a seguir os caminhos que lhe indicam a crítica, a moral ou o mercado. Pois está determinada a ir além da mera representação social ou do documento de identidade, até onde eu e o aluno (e os nossos discursos) seremos obrigados a nos reinventar junto com ela?.

?Tiazinha? ou ?avozinha?, volto à livraria para encontrar na leitura da literatura o modo como o tempo atual recria outros tempos e os revigora, para que eu, leitora, possa perceber como se trama a história, em momentos de ruptura com a continuidade que, dialeticamente, confirmam uma natureza permanente da reinvenção do real. 

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