Você já ouviu falar em senciência?

A preocupação com o bem-estar animal vem evoluindo ao longo do tempo. Entre os séculos XVIII e XIX, grande parte da população mundial seguia os preceitos do filósofo, cientista e matemático francês René Descartes (1596-1650), que acreditava que era lícito realizar qualquer prática com animais pelo simples fato de que eles não tinham sentimentos.

Na mesma época, alguns conceitos religiosos davam conta de que os animais não tinham alma e, também por esta razão, eram isentos da capacidade de sentir. O pensamento começou a mudar um pouco mais tarde, quando a sociedade começou a considerar as idéias do filósofo inglês Charles Darwin (1809-1882), que reconhecia a proximidade entre o homem e o animal.

Levando em conta as similaridades entre a fisiologia e a anatomia humana e animal, ele chegou a escrever: "Não existe nenhuma diferença fundamental entre o ser humano e os animais superiores em termos de faculdades mentais. A diferença entre a mente de um ser humano e a de um animal superior é certamente em grau e não em tipo".

Hoje, está comprovado que os animais vertebrados possuem sistema nervoso central, com características anatômicas diferenciadas e, como qualquer ser humano, sentem dor, frio, alegria, tristeza e mesmo stress. Por isso, nas clínicas veterinárias e nos cursos de Medicina Veterinária e Zootecnia a palavra senciência (cujo adjetivo senciente é definido como "que tem sensações") – muitas vezes tida como sinônimo de ciência do bem-estar animal – começa a ser cada vez mais ouvida entre alunos e professores.

Segundo informações do Laboratório de Bem-Estar Animal (Labea) da UFPR, fundado em 2004, a pesquisa de bem-estar animal começou a ser desenvolvida na década de oitenta e tem suas bases conceituais começando a se estruturar pelo mundo. "A senciência está ligada à medicina preventiva. Quando a qualidade de vida de um animal é preservada, pode-se evitar que ele venha a ter problemas de saúde, frutos da forma como foi criado", diz a médica veterinária e coordenadora do Labea, Carla Forte Maiolino Molento.

A preocupação com o bem-estar deve acontecer tanto com os animais domésticos e selvagens quanto com os de abate. A senciência não é contra a morte de animais para consumo humano, mas contra a forma como eles são tratados em muitos abatedouros, não tendo suas necessidades comportamentais naturais respeitadas. "Pela senciência, o médico veterinário e o zootecnista devem buscar estratégias de qualidade de vida dos animais dentro de todos os processos existentes na sociedade. Num abatedouro, por exemplo, é possível diminuir os graus de sofrimento de acordo com os processos utilizados."

Carla acredita que todo cidadão interage com os animais. Isso acontece até mesmo quando as pessoas compram produtos de origem animal no supermercado, adquirem um casaco de lã ou consomem cosméticos que foram testados em bichos. Ela defende a idéia de que as pessoas devem conhecer o processo produtivo do que adquirem, podendo optar se querem ou não utilizar produtos que, para serem elaborados, causaram algum tipo de sofrimento aos animais. "Isso já acontece na Inglaterra e outros países da Europa. Se reconhecemos que os animais têm capacidade de sentir, temos responsabilidades em relação à qualidade de vida deles. Temos que levar em conta os interesses dos seres com os quais interagimos."

Limitações de espaço geram comportamento atípico

Um dos animais que tem suas necessidades comportamentais muito desrespeitadas é o porco. Em criadouros voltados ao abate, os suínos normalmente são mantidos em ambientes bastante restritos, nos quais não conseguem sequer se movimentar, e com altas temperaturas.

"Muitas vezes, os porcos ficam em espaços onde só cabem os seus próprios corpos. Sem conseguir desenvolver qualquer tipo de atividade e obrigados a se manter inertes, eles acabam desenvolvendo comportamentos anormais, como morder a barra de contenção das gaiolas que os cercam ou qualquer superfície à qual tenham acesso", comenta a veterinária Carla.

Em função do baixo grau de bem-estar normalmente imposto aos porcos, a coordenadora do Labea e estudantes da UFPR vêm desenvolvendo estudos sobre o comportamento natural dos animais. No hospital veterinário da universidade, localizado no bairro Juvevê, em Curitiba, algumas porcas e seus filhotes são mantidos em local adequado, providos de espaço e onde podem satisfazer suas necessidades principais.

"A sociedade criou um estereótipo do porco como sendo um animal sujo e que não se preocupa com a higiene. Tanto que porco virou sinônimo de pessoa que não toma banho. Na verdade, os porcos são animais extremamente limpos. O fato de eles serem vistos se rolando nas próprias fezes, por exemplo, é conseqüência da forma como eles são criados pelo homem e não um comportamento natural da espécie."

A atitude se explica pelo fato de que, quando adultos, os porcos são animais que sentem muito calor. Na natureza, eles procuram rolar o corpo na água ou na lama para se refrescar. Presos em pequenos espaços, acabam tendo que buscar opções para baixar a temperatura do corpo, sendo que muitas vezes as únicas encontradas são as fezes. "Em local com espaço, os porcos separam um canto específico para fazerem suas necessidades, sendo bastante higiênicos."

Os porcos também são animais considerados muito inteligentes e com boa capacidade de aprendizagem. Eles geralmente não têm alta motivação para conviver com o homem, normalmente não sendo ensinados e tratados como animais domésticos. Porém, são muito bons para construir ninhos e obter do meio ambiente os recursos de que necessitam. (CV)

Pesquisas com aves e animais domésticos

Além dos estudos desenvolvidos com suínos, o Labea realiza pesquisas de bem-estar com aves de corte e animais domésticos. No que diz respeito às aves, as atenções são voltadas principalmente aos faisões. No decorrer dos trabalhos, eles são colocados em gaiolas bastante pequenas e em locais espaçosos, sendo verificadas as diferenças de comportamento.

Em espaços restritos, os pesquisadores puderam observar que as aves desenvolvem comportamentos atípicos e repetitivos, como andar sem parar de um lado para o outro, eriçar as penas e agredir companheiros da mesma espécie. Em muitas aves, as brigas constantes resultam em caudas danificadas, com penas ausentes, e costas machucadas.

Em relação aos animais domésticos, as pesquisas são focadas principalmente em animais de companhia, como cães e gatos, tendo como ponto crítico o controle populacional dos bichos que vivem nas ruas. Os integrantes do Labea pretendem apresentar alternativas ao trabalho do Canil Municipal de Curitiba – comandado pelo Centro de Controle Zoonoses – no qual os animais são capturados e, dias depois, sacrificados.

A idéia é de que o sofrimento dos animais de rua seja minimizado através do controle de natalidade, promovido através de campanhas de castração e de conscientização da população, que não deve permitir que seus cães e gatos circulem livremente pelas ruas. O Labea parte da crença de que o abandono gera sofrimento aos animais e, ao mesmo tempo, coloca em risco a saúde das pessoas, sendo que os bichos podem transmitir doenças aos seres humanos. (CV)

UFPR ofertará disciplina no início de 2006

Bem-estar animal começou a existir como disciplina – presente nos cursos superiores de Medicina Veterinária, Zootecnia e mesmo Biologia – há bem pouco tempo. No Brasil, ainda existe em uma quantidade pequena de instituições, como as universidades de Brasília e do Estado de São Paulo.

Na UFPR, a previsão é de que comece a ser ofertada no primeiro semestre de 2006, com apoio do Labea, que mantém convênio com a World Society for the Protection of Animals (Sociedade Mundial de Proteção Animal). A UFPR será a primeira instituição a oferecer a disciplina no Estado.

Através da disciplina, os futuros profissionais irão aprender a diagnosticar o bem-estar animal e criar estratégias de melhoria da qualidade de vida dentro de diversas áreas onde há interação entre homens e animais. "Existe uma iniciativa grande da Sociedade Mundial de Proteção Animal em fomentar a oferta da disciplina dentro das faculdades e universidades, pois há uma demanda grande de profissionais voltados a isso", diz a veterinária Carla Molento. "O médico veterinário, por exemplo, tem sua atuação muito voltada ao atendimento clínico e à produção animal. Muitas vezes ele é solicitado para trabalhar na área de bem-estar, mas não recebeu formação para isso." (CV)

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