O drama das mulheres que bebem

?Eu comecei a beber com 14 anos, no colégio. Depois que tive filhos, eu chegava em casa pela manhã já dopada e os levava para a escola. No caminho de volta eu já passava no bar para comprar umas cervejas e fazia o almoço bebendo. Depois eu ia trabalhar, mas sempre com uma sacola cheia de bebidas dentro, pois durante a tarde eu precisava me abastecer até a hora do happy hour. Às vezes eu estava no bar, acompanhada dos meus filhos pequenos, e eles queriam ir embora, mas eu não queria e ainda brigava com eles. Um dia eu olhei do outro lado da rua do bar e vi que ele dormia na rua.?

Esse é o depoimento de E.M., de 40 anos, que se tornou dependente das bebidas alcoólicas muito cedo, praticamente uma criança. Segundo ela, durante muito tempo a bebida foi simplesmente um prazer, sem contar com a cocaína e a maconha. Seu ex-marido também usava todo tipo de entorpecente, tanto que hoje ela está separada. ?Nós tínhamos um bar e acabamos falindo por causa da dependência?, conta ela. Hoje, depois de nove anos, E.M. está recuperada e participa do grupo Alcoólicos Anônimos (A.A.). Ela é uma mulher bonita, que tem muita vaidade e alguma tristeza por aquilo que não volta. ?Ver o meu filho dormindo na calçada porque eu não queria sair do bar foi o pior. Tem coisas que não voltam?, desabafa.

O caso dela se repete, e muito, em Curitiba, e também em todo o País. E, pior, casos de alcoolismo entre mulheres estão se tornando mais freqüentes do que em homens. Pesquisas realizadas em 2004 pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid) constataram que 71,3% das mulheres entrevistadas já tinham tomado bebidas alcoólicas alguma vez na vida, contra 67,7% dos homens. De acordo com um dos coordenadores do A.A. em Curitiba, há alguns anos, para cada dez pessoas que bebiam, nove eram homens e apenas uma era mulher. ?Hoje, a proporção já é praticamente a mesma?, lamenta.

Segundo ele, o grande problema hoje é que, apesar de as mulheres terem mais liberdade na sociedade e beberem mais em bares sem se esconder, a vergonha em admitir a doença ainda impera, o que pode mascarar as estatísticas. ?Elas negam a doença e as famílias não aceitam?, explica.

E.M. pode ser considerada privilegiada, já que procurou ajuda, pois dados de 2005 do Cebrid comprovam que as mulheres vão menos atrás de tratamento. Enquanto 4,7% dos homens entrevistados declararam que buscavam ajuda médica quando percebiam a dependência, apenas 1,6% das mulheres fizeram a mesma afirmação. Para se ter uma idéia, apenas 10% dos membros do A.A. são mulheres. Especialistas dizem que o alco- olismo entre elas pode ser ainda mais grave do que nos homens, tanto para elas mesmas quanto para toda a sociedade. Na questão da saúde, o médico especialista em dependência química e professor universitário Dagoberto Requião afirma que a mulher se intoxica muito mais rápido do que o homem, devido a sua estrutura física. ?Culturalmente, a mulher não é acostumada a beber, já começa por aí. Depois temos o corpo da mulher com menos água do que o do homem, sem falar na sobrecarga no fígado e no cérebro, que é igual para ambos os sexos?, explica. Na questão social, a explicação parece óbvia: a pessoa que bebe coloca em risco e incomoda todos que estão a sua volta. Para o secretário executivo do Conselho Estadual Antidrogas, Jônatas de Paula, o alcoolismo é preocupante em ambos os sexos, porém na mulher ele se torna ainda pior. ?A mulher, que sempre foi a força principal na família, acaba se desestruturando por conta da sociedade de consumo, começa a beber, pára de monitorar os filhos, que muitas vezes também começam a beber. É também por isso que vemos hoje que a iniciação na bebida está cada vez mais precoce?, analisa. Segundo ele, hoje as pessoas começam a beber quando crianças, na faixa etária dos dez aos 12 anos. Requião compartilha dessa opinião. ?Estamos percebendo que com o tempo a idade média da dependência tende a baixar. Isso é muito preocupante?, completa o especialista.

Não há mais culpa em beber em locais públicos

Foto: Ciciro Back/O Estado
C.M. começou a beber quando estava na faixa dos 30 anos.

Para o coordenador do Alco-ólicos Anônimos (A.A.) em Curitiba, os motivos que levam as mulheres a beber são os mesmos que os dos homens. A única diferença é que, há alguns anos, as mulheres tinham vergonha de beber em um bar, por exemplo. Hoje elas bebem sem culpa em locais públicos, mas muitas têm vergonha de procurar tratamento.

?No início, a pessoa mascara os problemas com o álcool. Mas depois que a doença se instala, o alcoolista não bebe mais pelo simples prazer, mas sim pelo efeito que essa bebida vai produzir nele. Então ele passa para uma bebida mais forte para ter efeitos mais rápidos?, comenta.

O caso de C.M., de 48 anos, ilustra bem essa afirmação. Ela também é membro do A.A., em Curitiba. Na faixa dos 30 anos, ela começou a beber em casa, com uma caipirinha aos domingos, e de repente se viu bebendo trancada no quarto, sem forças sequer para ir à cozinha jogar fora os restos da bebida. Depois ela começou a tomar quando saía com os amigos, às sextas-feiras, e quando percebeu estava saindo a semana inteira, e também bebendo a semana inteira. ?Eu cheguei ao ponto de mandar meus filhos dormirem mais cedo para eu poder beber. Eu só procurei ajuda quando eu percebi que estava neurótica, quando não conseguia mais esperar chegar a noite para beber e quando minha filha me chamou de alcoólatra. No começo você bebe por prazer, depois por necessidade?, conta.

O álcool ainda produz outras cenas deprimentes e muito tristes. Segundo C.M., uma vez quando estava alcoolizada ela correu atrás de seu filho com um garfo na mão e o machucou, ficou com uma cicatriz. Cicatriz que ela conta que ficou nela também, só que muito mais profunda. ?Eu queria morrer. Eu vi que aquela mãe tão carinhosa que eu era o álcool havia detonado?, lamenta.

Sul tem mais pessoas que já experimentaram álcool

A região Sul do País possui o maior índice de pessoas que afirmaram, em pesquisas, já terem feito uso de álcool pelo menos uma vez na vida. O índice por aqui chega até a ser maior do que o nacional. Enquanto 65,2% dos entrevistados no País em uma pesquisa do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid) disseram já ter experimentado bebida alcoólica, 68,8% dos entrevistados da região Sul fizeram a mesma afirmação. Esse índice diminuiu neste ano, ficando 74,6% contra 73,9%, respectivamente.

Em 2001, o índice de alco-ólistas no País era de 11,3%. Hoje, chega a 12,3%, referência que pode ser trazida para o Paraná, segundo os especialistas. O médico especialista em dependência química e professor universitário Dagoberto Requião explica que grande parte desse aumento se deve ao consumo feito pelas mulheres. A maior liberdade das mulheres na sociedade e o ingresso no mercado de trabalho fez com que elas começassem a beber mais e até a ter mais doenças que antigamente eram tipicamente masculinas (como enfarto e câncer de pulmão), segundo ele.

Já para o secretário executivo do Conselho Antidrogas Estadual, Jônatas de Paula, a questão do baixo preço da bebida aliada à maior aceitação social que as mulheres que bebem têm hoje foram os fatores que contribuíram para o aumento da dependência no sexo feminino. ?Em Curitiba, temos o problema da colonização, a questão de que o álcool não é visto como droga e ainda o fator da educação diferenciada para homens e mulheres. Os pais orientam os meninos a não beber, já as mulheres são alertadas no sentido da iniciação sexual. Temos que mudar o comportamento da sociedade?, analisa.

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