Na memória dos filhos adultos

Para falar de leitura em família – ou incentivada pela família, considero que minha tripla função de mãe, professora e formadora de professores especialistas em leitura não são suficientes para estabelecer um decálogo para que outros pais motivem seus filhos a ler. No entanto, alguns comportamentos a experiência já provou serem recomendáveis para a formação de filhos leitores. É preciso, antes de tudo, que os pais tenham bom senso, iniciativas criativas, crença inabalável em seu papel educador, e o exemplo pessoal de leitores atentos e permanentes.

Nos momentos em que converso com professores, muitos deles também pais, a respeito da formação de leitores, ouço desde depoimentos emocionados sobre a iniciação na leitura, acontecida ainda entre as paredes da casa paterna e alimentada por um parente próximo – avós, pais, irmãos, tios – até a lamentação envergonhada de um passado sem livros. Os exemplos desse passado, nem sempre distante, promovem uma espécie de exame de consciência cultural que aponta sempre para a força benéfica de livros e leitores companheiros, desde a idade mais tenra e próxima do berço. Uma pessoa alimentada precocemente pela leitura dificilmente desiste de ler quando adulto, ou permanece num estado de inteligência vegetativa.

Os depoimentos de leitores adultos associam afetivamente os textos à pessoa que os iniciou e maravilhou. Se os pais dessem atenção à sua memória, e a de seus amigos, a respeito das marcas indeléveis deixadas por leituras compartilhadas sob o teto familiar, não hesitariam em incluir a leitura em voz alta na programação diária dos filhos.

Não estou pensando em leituras escolares, aquelas que visam ao sucesso em exames ou trabalhos. Penso fortemente naqueles textos trazidos com cuidado amoroso para descortinar horizontes, alimentar o imaginário, sugerir mundos desconhecidos, ou brincar com palavras, sons e sentidos. Basta pensar em nosso desconsolo, quando crianças, ao sermos obrigados a ler textos de reforço às aulas de geografia, história, ciências ou matemática. No entanto, quanto nos pareciam mais atraentes em seu falso descompromisso os textos dos quadrinhos, dos contos infantis, das novelas de aventuras!

Considero falso descompromisso porque pessoalmente aprendi muito mais sobre o mundo em todas os conteúdos e saberes de que ele se compõe fora da escola, entregue a textos saborosos, marcados pelo desafio e pela distância da sala de aula. São esses textos que, ao final, representam um compromisso com a construção de um indivíduo plural, governado por decisões pessoais e inalienáveis.

Quando imagino uma cena de leitura doméstica não a vejo ocasional ou passageira. É sempre uma cena preparada com o carinho de pais-educadores. A escolha cuidadosa do espaço mais aconchegante sem deixar de ser prático, e de textos sempre imaginativos, de simplicidade complexa e linguagem poética. O momento ritualístico e intransferível da leitura em voz alta, calorosa sem caricatura, emocionada e verdadeira sem artificialismos, em que os desejos e curiosidades enredam-se em olhares e sons. A atmosfera de concentração necessária para que se abram as portas do imaginário e a fantasia possa nele navegar sem limites ou censura. A conversa esclarecedora e amplificadora, constituída antes por uma troca de sabores e saberes provocados pelo texto do que à semelhança de uma aula particular, em que a voz do mestre é sempre a do adulto. A curiosidade e desejo de mais e mais histórias precisam ser inculcados em nossas crianças. Elas crescerão com maior competência para pensar, argumentar, inventar, exemplificar e compreender o mundo que as cerca.

Psiquiatras, educadores e pesquisadores têm afirmado o caráter terapêutico da leitura desde a mais tenra idade. Não se trata de poupar as crianças e os adolescentes da realidade mais cruel do cotidiano, mas de educá-los, mostrando-a sob o véu da imaginação e da magia, para que os ouvintes aprendam a elaborar comportamentos e saídas saudáveis para os problemas da vida.

Podemos a qualquer momento iniciar um trabalho sério de educação para o contar e o ouvir. Temos que considerar as características de interesse, capacidade de atenção e concentração, gosto pessoal de cada um dos filhos. Isso nos auxiliará no momento da seleção dos textos a serem lidos. Precisamos visitar livrarias e bibliotecas, recordar e reler os textos de nossa infância. Escolher o que possa interessar à criança que acredito reconhecer em meu filho. Fugir de textos repetitivos e superficiais, feitos à moda e semelhança dos produtos de consumo anunciados pela televisão. A novidade e o diferente são bons critérios de seleção. Ler silenciosamente o texto antes de contá-lo, para que ele seja dito com naturalidade. Escolher o momento e o local, evidenciar o quanto consideramos importante estar ali, lendo. Recuperar, ao ler, o prazer infantil da criança que fomos, e que está representada no filho que nos ouve. Estabelecer uma atmosfera de cumplicidade. E torcer muito para que a escolha do texto tenha sido acertada. Se não o foi, não desistir. Acreditar que chegará o dia em que a criança se interessará naturalmente por outros textos, lerá para nós, desejará estar cercada de livros e guardará em sua memória a imagem desses momentos de companheirismo na leitura.

Assim, poderemos ter certeza que, quando estimulados a dar seu depoimento sobre a fonte de sua paixão pela leitura, lá estaremos – pai ou mãe – relembrado(a) com carinho e saudade na voz dos filhos adultos.

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