Escritos na passagem de ano

Uma das personagens mais encantadoras de minha meninice foi a fada Sininho, da história de Peter Pan e Wendy, de J.M. Barrie. Antes que eu assistisse à versão cinematográfica de Walt Disney (1953), que simplifica e adoça a figura de Peter Pan, para consumo mais amplo, eu já convivia com a imagem dessa sílfide, capaz de infiltrar-se em qualquer ambiente e de transportar pessoas no tempo e no espaço, lançando sobre eles ?o pó de pirlimpimpim?, palavras mágicas saídas da tradução do mago Lobato. Fada que hoje, descubro, tem poderes semelhantes aos do leitor em sua atividade: in(filtrar)-se e (trans)portar-se à terra de outros, na medida que convive com os textos e os interpreta.

Conformada com minha falta de leveza para pairar no espaço, bem como desprovida de qualidades mágicas, invoco os poderes de Tot, o deus da escrita, que me contamina por seu nome, um palíndromo, a ser lido e proferido de trás para diante e vice-versa. Esse momento no tempo e este movimento no espaço assemelham-se à minha necessidade, nesta crônica, de realizar deslocamentos em tempos e escritas diferentes, em visitas a realidades presentes, para tratar de mais uma mudança de ano.

Que Sininho e Tot me permitam imaginar a leitura de diários datados de 31 de dezembro, escritos por autores diversos em disposições anímicas diferenciadas e em condições variáveis de vida. Movida, deste modo, pelas asas da imaginação e pelo poder de registro da linguagem escrita, bisbilhotarei a seguir alguns possíveis modos de entender a figuração mais perfeita do tempo que flui incessantemente: a passagem de ano.

Do diário de uma jornalista a serviço de uma ONG de assistência a menores de rua: ?N.F.G., 8 anos, na rua desde os 6, declarou que não sabe quantos dias tem um ano, mas que, em 31 de dezembro, sente muito medo do barulho dos foguetes, mas se consola ao pensar que ganhará um imenso prato de comida quando passar a kombi da Assistência Social?.

Do diário de uma adolescente: ?Ficou demais meu vestido novo. Aquele gato não me escapa. Quando a gente for ver os fogos da sacada da casa dele, aproveito o escurinho para atacar. E não vai ser selinho, não!?

Do diário de um depressivo: ?Ah, a hipocrisia humana! Lá estão as criaturas a festejar o Ano Novo. Depois, correm para as clínicas estéticas à procura de apagar as marcas do tempo…Nada faz sentido na ação dos homens?.

A escrita de um vestibulando: ?Santo Expedito, que o ano comece com meu nome na lista de uma universidade! De preferência, em Medicina, meu santo!?

De um médico de plantão: ?Que o novo ano me traga muita alegria, e que os numerosos bêbados deste réveillon não entrem em coma!?.

No diário de um professor horista: ?Será um bom ano se não me faltarem aulas no decorrer dos semestres letivos…?.

Um político corrupto: ?Que o próximo ano seja repleto de votos e malas!?.

No diário de um condômino irritado: ?Que o som do vizinho quebre e ele não possa comprar outro!?.

Do candidato a gerente: ?Que este próximo ano me traga o cargo, os encargos e a chance de mostrar que posso subir mais ainda. Afinal, eu mereço!?.

Do doente no leito de hospital: ?Saúde não tem preço. Mas só ela: tudo o mais sai muito caro! Que eu tenha como pagar minha recuperação!?.

No diário da mãe aflita: ?Que meus filhos voltem sãos e salvos para casa ao final de todas as noitadas do próximo ano!?.

No diário desta escriba: ?Esperei 365 dias para concluir, mais uma vez, que o tempo despenha-se rapidamente para o nada, e que a esperança sobe o mesmo despenhadeiro em sentido contrário, com o mesmo vigor. Comprovo novamente que os seres humanos são feitos de tempo e de esperança, que há pessoas de diferentes categorias entre elas, as cegas, as tolas, as ignorantes, as corruptas, as safadas, as que acreditam, as que não acreditam mais, as solitárias, as compassivas, as deprimidas, as mentirosas, as aventureiras, as fiéis…. Enquanto seres humanos, alternamos várias dessas categorias ao longo de um ano de vida. No entanto, ao soarem os anúncios de um novo tempo, cumpre desejar que o próximo ano nos enriqueça moralmente, nos revigore naquilo que acreditamos, nos fortaleça em nossas fraquezas, enfraqueça nossos defeitos, nos aproxime de quem amamos e mantenha longe de nós tudo o que odiamos. Encerro o diário deste ano que termina, buscando desintoxicá-lo de todos seus horrores, e abro a página limpa e atraente, aurora de um tempo de esperança, do primeiro dia de um novo ano?.

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