Desarmamento dos espíritos

O título é mais amplo do que se disséssemos ?de espíritos? porque neste estamos afigurando uma disposição temporária, a contenção de impulsos nocivos ou exaltação do humor agressivo, enquanto no primeiro falamos de uma deficiência moral não corrigida, característica arraigada e permanente. Até que a extirpemos.

O referendo de hoje pode representar pouco em termos de mudanças se vencer o SIM e nada se der o NÃO. O que significa para os fabricantes de armas se algumas milhares de vidas deixarem de ser poupadas anualmente, vítimas que engrossarão as estatísticas de mortes acidentais ou por brigas entre vizinhos, amigos, no trânsito? Um filho ou um irmão, desde que não seja o deles, tem alguma importância? Filho de um amigo nosso, nove anos, morto por um tiro disparado por outro garoto de sete, filho de colega militar, conhecedor do risco e cuidados de posse. Brutalmente ceifada a vida do menino, a família nunca mais se recuperou. O pai, embora autorizado ao porte, nunca possuiu arma.

Os números, às vezes, são contraditórios. A propaganda oficial, o lobby e até órgãos informativos sofismam. Comparam países com poucos homicídios que têm o porte de armas liberado como a Suíça; outros onde os índices de homicídios não diminuíram após a proibição mas já eram baixíssimos como a Austrália; e Jamaica com índices elevados, apesar da proibição. Tudo sem levar em conta as diferenças de educação, cultura, condições sociais, eficiência policial.

A base argumentativa a favor do NÃO polarizou os direitos da população pacífica versus o poder dos bandidos. Mas não é papel do cidadão enfrentar criminoso. É dever do Estado proteger aquele deste. Se falha, cabe à sociedade reivindicar, pressionar e exigir seus direitos.

Ingenuidade imaginar que a proibição do comércio de armas venha resolver o problema da violência instalada na periferia dos grandes centros urbanos, nos morros e favelas, reféns do narcotráfico. Primeiro porque há milhões de armas ilegais em mãos da bandidagem. Segundo porque a violência também causa vítimas por outros meios como as armas brancas e no trânsito louco, tão ou mais brutal, de nossas cidades e estradas. Mas há uma outra faceta da violência, a que está dentro de nós e se exterioriza em palavras e atitudes agressivas no âmbito familiar, na competitividade profissional, no dia-a-dia.

O físico Clóvis Nunes, coordenador da ONG MOVPAZ e que reuniu 200 mil pessoas em abril, em Salvador, lembrou que nossa cultura é de violência e não de paz: 45 milhões de abortos/ano no mundo, fora os clandestinos; dezenas de guerras entre países ou intestinas; o terrorismo. E o que dizer de musiquinhas e histórias infantis como ?Atirei o pau no gato?, ?Chapeuzinho Vermelho? e ?Tom & Jerry? e agora os jogos eletrônicos? Nosso vocabulário está carregado de expressões de violência: luta pela sobrevivência, guerra à dengue.

A resposta da questão 748 de O Livro dos Espíritos admite o direito de legítima defesa ?… mas se puder preservar a vida sem atingir a do agressor, deve fazê-lo?. Quanto à defesa do patrimônio, encontramos o parecer na 882. ?O homem tem o direito de defender o que ajuntou pelo trabalho?? Segue-se a resposta dos Espíritos: ?Deus não disse: não furtarás; e Jesus: é preciso dar a César o que é de César?? Allan Kardec acrescenta que a propriedade adquirida pelo trabalho honesto é legítima e tem-se o direito de defendê-la, pressupõe-se que, inclusive, fazendo o uso de armas.

Com uma série de condicionantes atendidas talvez ficássemos com o NÃO, embora então perdesse a finalidade. Polícia e justiça eficientes, erradicação da miséria, responsabilidade preventiva na posse e uso, repressão eficiente ao contrabando e outras. Como nossa realidade é outra, por desfrutarmos de um regime democrático e numa sociedade pluralista, respeita-se os que pensam diferente. Mas não podemos abrir mão do entendimento que permeia o movimento espírita. A Federação Espírita Brasileira pronunciou-se a favor do SIM no próprio espaço de propaganda de rádio e TV. A Associação Brasileira de Divulgadores do Espiritismo, entidade especializada em comunicação social espírita, em âmbito nacional, fez o mesmo em seu boletim virtual distribuído a milhares de destinatários.

E a Associação de Divulgadores do Espiritismo do Paraná acompanha porque é nossa convicção de que armas não solucionam nada. Alguém já imaginou Francisco de Assis portando uma? Chico Xavier? Irmã Dulce ou Madre Tereza de Calcutá? E quanto à política de não-violência de Gandhi? Jesus? Concordamos com as atitudes destes personagens ou com as de Bush e Bin Laden? Se no coletivo pendemos para a paz e para o bem, por que no plano individual ou pessoal agiríamos em contrário?

Não tenho arma ou guarda-costas. Não dirijo carro de luxo. Minha esposa não ostenta jóias na rua. Meus filhos não precisam exibir roupas de grife ou tênis de marca. Evito horários e locais suspeitos. Descobri um lugar relativamente seguro para morar e está longe de ser uma mansão. E, acima de tudo, embora jamais abra mão do uso da razão, tenho muita fé em Deus. Esta é a minha receita.

Não estamos apregoando a ninguém tornar-se herói ou mártir. Preocupa-nos, por exemplo, a situação de algumas classes profissionais como taxistas e caminhoneiros. Talvez haja necessidade de uma legislação complementar. Mas a humanidade precisa continuar acreditando e praticando a paz. O Bem prevalecerá quando for expressão ativa da maioria dos homens. Regidos conscientemente por princípios de amor, justiça e solidariedade, teremos menos desigualdades sociais, pessoas mais esclarecidas e com mais oportunidades, empresários menos gananciosos, lideranças mais compromissadas com o bem-estar dos grupos, leis mais justas e governos mais responsáveis. Apesar de tudo o que aí está.

(e-mail: adepr@adepr.com.br)

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