Muros da vergonha

Crise de refugiados não é de fronteira e exige solução global

A histórica e triste imagem do pequeno Aylan sem vida e com o rosto repousando na areia de uma praia turca despertou o mundo para a emergência humanitária que agora atinge a Europa. Mas, por outro lado, evidenciou a incompreensão da sociedade sobre as particularidades de uma situação que piora dia a dia.

A morte do menino de três anos não é o episódio mais emblemático de um problema europeu, italiano, húngaro, grego, alemão ou mesmo sírio. Ela é resultado da mais grave crise de refugiados desde a Segunda Guerra Mundial, algo que afeta todo o planeta e que, por isso, exige soluções globais.

Não estamos falando de uma crise só, estamos falando de várias. As nacionalidades que estão atravessando o Mediterrâneo são muitas. Tem que ser feito um esforço integrado e levar em conta não apenas aspectos de direitos humanos, mas também elementos que tenham a ver com políticas de desenvolvimento nos países de origem e de resolução de conflitos”, diz o representante no Brasil do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), Andrés Ramirez.

É evidente que os sírios formam o maior contingente de pessoas que chegam à Europa fugindo de perseguições por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou política. Segundo dados da Organização Internacional para Migrações (OIM), dos mais de 432 mil indivíduos que entraram no bloco via Itália e Grécia entre 1º de janeiro e 10 de setembro de 2015, mais de 70% são provenientes do país árabe.

Por isso, um combate efetivo à emergência passa necessariamente por uma improvável resolução da guerra civil na Síria, que em quatro anos já fez 240 mil vítimas e originou 4 milhões de deslocados externos, dos quais 95% estão abrigados em países da região, como Turquia, Líbano, Irã e Jordânia, coincidentemente quatro dos seis que mais hospedam refugiados no mundo – os outros são Paquistão e Etiópia.

“O único jeito de tratar a guerra hoje é com algum tipo de intervenção, mas todas as intervenções têm efeitos que podem ser muito perversos. O primeiro passo é entender que nenhuma solução é perfeita, mas simplesmente abandonar e deixar o conflito do jeito que está é convidar milhões de outros sírios a saírem de lá”, afirma o cientista político Heni Ozi Cukier, professor de relações internacionais da ESPM e da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

No entanto, ele reconhece que perdeu-se o “timing” para uma ação militar. Há muito tempo já não existem mais dois lados beligerantes no país. Os jihadistas do Estado Islâmico (EI), a Frente al Nusra – ligada à Al Qaeda -, as forças de Bashar al Assad, curdos, centenas de outras pequenas milícias. São infinitas divisões agindo cada uma por conta própria.

“Isso torna a intervenção uma das coisas mais difíceis do mundo, mas ignorar é inconcebível porque não vai resolver o problema”, acrescenta Cukier. Já para Gilberto Rodrigues, professor de relações internacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC), é preciso haver um acordo de paz e uma tentativa de afastar o EI, principal adversário do regime de Damasco. “Assad, com tudo o que ele cometeu em termos de atrocidade, é um governo constituído e que tinha uma estabilidade”, explica.

Nações em desenvolvimento

AE
Estados Unidos e Reino Unido vão abrir as portas para milhares de refugiados.

Os números alarmantes da guerra na Síria fazem com que os problemas em outras nações, principalmente na África, sejam colocados em segundo, terceiro ou até mesmo em nenhum plano.

Nas últimas semanas, Estados Unidos ,e Reino Unido prometeram abrir as portas, respectivamente, para 10 mil e 20 mil refugiados, mas apenas sírios, ainda que a convenção da ONU sobre o tema, elaborada em 1951, exija que os signatários – entre os quais se inclui Londres – não façam “discriminação quanto à raça, à religião ou ao país de origem” dessas pessoas.

De acordo com a OIM, dos 116 mil indivíduos que atravessaram o Mediterrâneo com destino à Itália nos primeiros oito meses de 2015, 30.708 eram da Eritreia, que convive há mais de 20 anos com o regime opressor do presidente Isaias Afewerki.

“É uma situação sem saída, com um ditador muitas vezes ajudado por governos ocidentais, não apenas da Europa. É uma situação muito embaraçosa e hipócrita, na qual, por um lado, recolhemos as pessoas com navios, e por outro, financiamos quem de fato provoca tal situação. Aí se entende a incapacidade da Europa em gerir essas crises geopolíticas”, afirma Loris De Filippi, presidente da ONG Médicos Sem Fronteiras (MSF) na Itália.

Depois dos eritreus no ranking de nacionalidades que cruzam o Canal da Sicília, aparecem nigerianos (15.113), somalis (8.790) e sudaneses (7.126), todos de países que sofrem com graves e duradouros conflitos internos.

Os sírios estão apenas em quinto lugar nessa lista, com 6.710, já que a maioria esmagadora deles entra na Europa pela Grécia. A travessia do Canal da Sicília é considerada a mais mortal do Mediterrâneo pela Organização Internacional para as Migrações, com 2.620 vítimas neste ano. O trajeto entre Turquia e Grécia – aquele que matou Aylan – registra 103 falecimentos.

Para Gilberto Rodrigues, as nações mais ricas deveriam aproveitar as discussões no âmbito da ONU sobre os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável para dedicar uma parcela maior de recursos aos Estados em desenvolvimento e ajudá-los a cumprir tais metas.

Se por um lado o auxílio a países pobres pode conter focos de fuga em massa, por outro ele aliviaria um pouco a situação dos que carregam o maior fardo da atual crise de refugiados no planeta. Segundo o Acnur, 86% dos que fogem de perseguições em suas terras natais estão abrigados em nações em desenvolvimento.

No primeiro semestre, por exemplo, o Exército do Quênia pediu o fechamento do complexo de campos de refugiados de Dadaab após o ataque do grupo jihadista somali Al Shabab à Universidade de Garissa, que deixou 148 mortos. Se isso se confirmar, mais de 400 mil pessoas não terão para onde ir.

“Algumas voltariam para a Somália, muitas delas pegariam qualquer caminho para serem refugiadas em outro lugar, podendo chegar até nós. Esse é o fato: Quanto a Europa se sacrifica por essas coisas?”, diz Loris De Filippi.

Para o presidente da MSF na Itália, outra situação preocupante é a do Iêmen. Se o conflito entre o governo, apoiado por forças lideradas pela Arábia Saudita, e os rebeldes xiitas houthis não for resolvido, em breve milhares de iemenitas podem começar a cruzar o Golfo de Áden rumo à Somália, chegar ao litoral da Líbia e atravessar o Mediterrâneo com destino à Itália. Desde o começo da crise, em janeiro, cerca de 60 mil pessoas deixaram o Iêmen e entraram no Chifre da África.

Contenção de danos

AE
É preciso encontrar uma maneira urbana para lidar com esta crise. Afinal, trata-se de humanos.

Apesar de necessário, resolver os problemas que fazem os cidadãos de um determinado país fugirem leva tempo. Enquanto isso, a Europa precisa encontrar uma maneira humana de lidar com os milhares de solicitantes de refúgio que está recebendo.

Na visão de Filippi, isso começa por fazer com que essas pessoas cheguem ao continente sem cruzar o Mediterrâneo, que se tornou um “verdadeiro cemitério”. Uma medida do tipo seria permitir que elas pedissem refúgio a nações da União Europeia em seu próprio país ou nos fronteiriços.

Atualmente, está em vigor no bloco o Regulamento de Dublin, implantado em 1997 e que est,abelece que o responsável por analisar essas solicitações é o Estado-membro aonde o candidato chegou primeiro, peso que hoje recai principalmente sobre Grécia, Itália e Hungria.

No entanto, cada país da UE tem sua própria política, e essa regra faz com que muitas pessoas evitem ser registradas ao entrar no bloco para pedirem refúgio em nações mais ricas, como Alemanha, Áustria e Reino Unido. Por conta disso, várias vozes têm cobrado normas comuns em toda a União Europeia e o fim do Regulamento de Dublin.

“A Europa é a ponta do iceberg, a situação é bem mais complicada no Oriente Médio. Dito isso, não quer dizer que não há uma crise na Europa. Tem porque ela recebia menos refugiados, e de repente passou a receber mais. Ela precisa adequar a sua estrutura para dar respostas a esse grande desafio. É uma situação complicada, por isso é importante ter um maior equilíbrio, distribuir o peso das pessoas que estão chegando”, afirma Andrés Ramírez.

Também defensor da equidade dentro da UE, Gilberto Rodrigues ressalta que é preciso colocar a burocracia e o voluntariado em ação para ouvir esses refugiados, levando em conta suas opiniões, e não tratá-los apenas como “animais”. “A outra parte do problema é que a Europa assimile esses refugiados. Primeiro os receba, e depois os integre. E essa integração precisa ser multidimensional, ela envolve documentação para legalizar essas pessoas, envolve algum auxílio financeiro emergencial para elas poderem comer”, explica.

No entanto, para que tudo isso aconteça, 28 países com governos, histórias, tradições e povos distintos precisam caminhar no mesmo sentido, diferentemente do que tem ocorrido até aqui, algo que está pondo em xeque o próprio futuro da União Europeia.

 “Essa crise vai colocar mais pressão e instabilidade no projeto europeu, que está se mostrando insustentável e à beira da falência”, afirma Cukier.

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