Bandeira branca

O salão não se continha em cores, sons e movimentos. As pessoas não se continham em gritos e rodopios. Já a noite de Carnaval continha, toda ela, os estereótipos da folia e da natureza da festa: calor, alegria ruidosa, tempo a escorrer com rapidez rumo ao alvorecer.

Ao chegar, ela sente de imediato o tamanho da besteira que fizera. Disse sim, que viria, à amiga, por conta da insistência dela. Reconheceu que, por causa das negativas dadas em anos anteriores, não tinha mais desculpas para faltar neste ano. Por que deixara o silêncio de sua casa ? Acomodara a custo o cachorro na despensa, para evitar que fugisse pelo jardim sem portões. Mais custoso fora deixar a leitura interrompida, na melhor parte do suspense, aquela em que a história faz uma reviravolta.

Sente, agora, os óculos embaçados, um pouco pela fumaça dos cigarros proibidos, mais pelo suor que escorre pelo corpo e cai da testa nas lentes indispensáveis. A amiga passa animadíssima num cordão que parece não ter fim. Faz sinais convidativos, incitando-a a sair da cadeira e cair na folia. Bem que gostaria, mas sente as pernas cansadas e a cabeça a rodar. A vida sedentária cobrava juros altos de sua animação. Mesmo sem jeito, bem que gostaria de parecer normal e seguir o cordão carnavalesco.

A visão dos foliões faz pulsar na memória os versos de Mário de Andrade, que acodem intensos: ?Fanfarras fanfarrans / fenferrens/ finfirrins…/Forrobodó de cuia!/ Vitória sobre a civilização! Que civilização?…É Baco?.

Do outro lado da mesa, a mãe de sua amiga toma goles de cerveja, na inútil intenção de acabar com a sensação de deserto, depois de uma hora de pulos e saracoteios. Mal pode ouvir quando ela lhe dirige a palavra. Em resposta, esboça um sorriso que imagina ser de concordância com o que imagina seja o comentário dela sobre a animação do pessoal e o ritmo da banda. Estranha que a mãe de sua amiga tenha, repentinamente, ficado surpresa e em silêncio. Em seguida, ainda sem dizer palavra, ela se levanta e sai em direção ao toalete.

Olha ao redor em busca de rostos conhecidos, novamente em vão. As fantasias de super-heróis e personagens das novelas de televisão não param de desfilar à beira do salão. Em imagem rápida, revê a poltrona favorita, a luz acesa do abajur, o livro aberto sobre a mesinha de canto. Internamente, lamenta o prazer perdido. No salão, tem receio do vexame que pode dar. Sem requebros, sem ritmo, sem animação, imagina o grotesco e o bizarro de sua presença.

A amiga retorna à mesa. Com ela, um rapaz sorridente na fantasia de caubói. Tentam conversar, mas os sons do salão decretam a ausência de comunicação. Ele sorri amarelo, ela responde num amarelo mais forte. Ele se aproxima e fala próximo a seu ouvido: ?Você….. o Carnaval? ….ontem …sem cansar… pletchirum. Pletchirum ??? Que língua é essa? Que ouvido é esse? Mais forte é o baticum, ziriguidum, baticulé.

Como é mesmo o cantar do canário da vizinha ? O CD da Gal canora enchendo o ar de emoções ? Por que disse sim?

Num repente, o moço amarelo e a amiga sorridente a carregam para o salão. Agora é a prova dos nove. Meio sem jeito, ardendo de desejo pela poltrona à meia luz, segue o cordão do axé que vai rolar a festa. Balança o corpo, buscando o toque do tambor, o ronco da cuíca, o surdo regente, o tamborim replicante. Desaparece na carreira do cordão. Volteiam na cabeça versos de Bandeira: ?a turba ávida de promiscuidade/ acotovelava-se com algazarra?. Envolta pela ?multidão inumerável?, também ela ?burburinhava?, buscando encontrar no tumulto a alegria tão anunciada e proclamada das noites de Carnaval.

As lentes dos óculos gotejavam, as faces em volta dissolviam-se em máscaras, o corpo respondia instintivamente à provocação do ritmo. Dançava qual marionete ?um Carnaval todo subjetivo?, sobretudo um ?Carnaval sem nenhuma alegria!?. Bandeira, Manuel Bandeira, bandeira branca, porta-bandeira. Ela desaparece no ?turbilhão da galeria?, sem dar bandeira.

Lembra apenas do corpo molhado pela água tépida do chuveiro. Depois, sentada na poltrona preferida, a retomada da leitura.    De todo o pão e circo, restou a escrita, como diz Mário de Andrade, ?Lentamente se acalma no país das lembranças/ a invasão furiosa das sensações./ O poeta sente-se mais seu. / E puro pelo contato de si mesmo/ descansa o rosto sobre a mão que escreverá. (…) E o poeta dorme.?

No dia seguinte, olheiras e cansaço a transbordar, recebe o telefonema de ira sibilante da mãe da amiga: ?Quero lhe pedir que não volte mais à minha casa. Ontem, quando lhe contei sobre a opinião maldosa dos vizinhos a respeito do comportamento de minha filha, sua amiga, você concordou de imediato e ainda sorriu ironicamente. Você é falsa… sua…sua… desajustada. Hipócrita! Ratazana de biblioteca!? E desligou.

Ala-la-ô-ô-ô-ô-ô.

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