Armário alto

Meu amigo pagou caro para o seu marceneiro de confiança fazer um armário, que foi colocado na sala de estar de seu apartamento, a fim de guardar o que ele considera ?gêneros de primeiras necessidades?.

Sua esposa determinou: – Já que é para guardar suas pingas, copos e saca-rolhas, que seja colocado bem alto. Não quero acidentes com as crianças!

Depois de negociar a altura, fixou a ?meia-prateleira e meio-armário? a aproximadamente um metro e oitenta do chão.

Segundo ele, cuja estatura é mais baixa do que isso, havia uma desvantagem e uma vantagem.

A desvantagem é que ele não conseguia ver o fundo do copo, na hora de enchê-lo, se não o tirasse de lá. Com o braço erguido, tinha que ficar atento.

Parecia uma boa desculpa: -Eu só enxergo quando o copinho está quase cheio!

A vantagem: caso o vidro emborcasse, seria possível aparar o precioso líquido na boca, se tivesse reflexo para tanto.

O cunhado agourento ainda alertava: – O copo é pequeno, cuidado para não engolir junto.

Nunca havia sido necessária essa ginástica gargantuesca, mas aconteceu no final da semana passada.

Disse-me que seu reflexo ainda estava perfeito, pois era o primeiro gole do sábado. Sem titubear, na hora em que percebeu o recipiente bailando, demonstrando graves probabilidades de queda, tudo em frações de segundo, abriu a boca na direção vertical e no prumo da cascata já iniciante, com o fito de reduzir a perda.

Tentaria a recuperação total! Um ?backup full?, à moda de sua mania por computadores. E o santo que se lascasse!

(Mesmo tendo recebido a parcela razoável que caiu no chão, o santo vingativo não aliviou na desproteção do meu amigo.)

Vários mililitros da branquinha bateram na sua glote, causando um engasgue daqueles que ninguém deseja e justificando, assim, o apelido de engasga-gato carinhosamente atribuído às bebidas baratas. A alcunha justifica também o comportamento das vítimas que, posteriormente, quando se lembram do episódio, se arrepiam como os felinos.

Parte do caldo grosso desceu pela garganta, tal qual um ouriço de dezenove pontas. Dessas, algumas pontas entraram pelo buraco errado, como se diz popularmente.

Com o engasgo, veio uma tosse única, forte, em diástole.

Segurando a boca fechada, para não perder nada, a pressão direcionou o líquido para saídas alternativas. Metade foi arder o ducto nasal e a outra metade os canais lacrimais.

Sentiu arder, na verdade, até o labirinto de um dos ouvidos.

Disse-me o oprimido pela própria ganância que seus olhos pareciam um alambique. Do esquerdo, saia o etanol, da parte chamada cabeça.

Do direito, a cauda ou água fraca, como se usa chamar na alambicada. Ele se identificava com uma mal feita reengenharia de um engenho velho.

E nem havia terminado o martírio, quando sua mulher, ouvindo barulhos de copos e madeiras, gritou da cozinha: – Esse armário ainda vai acabar com você!

Pensou: – Quando parar a ardência e a queimação, eu a esganarei com prazer.

Passado o incômodo, feliz como um menino, resolveu perdoar a esposa querida, assim como tomar as outras no bar da esquina, por medida de segurança.

Lá, já servido por um balcão em altura regulamentar, contou seu sofrimento para os amigos de copo, amendoim e ovos coloridos.

E decidiu: – Vou baixar aquele armário na semana que vem. Alto, lá em casa, só eu nos fins de semana!

Um outro bebo, com os olhos vermelhos e a voz pastosa, mas educada, impressionado com a estória, comentou:

– Puxa! Que perigo você correu. Vai que pega aversão?

Sérgio Antunes de Freitas www.reforme.com.br. / www.reforme.com.br/kitnet.

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