Michel de Montaigne e o Brasil: civilização em confronto com a barbárie

O pensador humanista Michel de Montaigne jamais pisou em terras brasileiras, mas teve a oportunidade de conhecer, mesmo que de forma superficial, um pouco mais daquelas terras recém descobertas, daquelas terras do “novo mundo”. Com efeito, em 1562, conforme relata Cláudia Vasconcellos(2), quando o rei Carlos IX recebeu em Rouen três índios tupinambás, o pensador Montaigne teve a oportunidade de conversar com um deles, por intermédio de tradutor, sendo que a experiência compõe “Dos canibais”, que se traduz em um dos belos capítulos da obra do moralista francês(3). E é exatamente este texto que também pode ser considerando um grande exemplo de ceticismo(4), e que coloca na balança a análise da “civilização moderna” em confronto com a “barbárie” – a base para algumas singelas reflexões que passa a expor. Destaque-se pois que o capítulo é um tanto quanto extenso e apenas serão pinçados alguns excertos para demonstrar a argúcia, a humanidade e a peculiar singularidade de Montaigne ao descrever fatos por ele vivenciados.

Um pequeno parêntesis desde logo deve ocorrer. O encontro entre o rei da França e os indígenas teria ocorrido no ano de 1562, em Rouen, mas, segundo o relato dos estudiosos de Montaigne, o encontro ocorreu em Bordeaux, no ano de 1565.

Mas é de somenos importância eventual imprecisão a respeito de datas; não importa se os encontros realmente ocorreram tal como relata o humanista em sua obra. Impende destacar, e isso está escrito, que já na advertência ao leitor, que abre os Ensaios, Montaigne faz referência expressa aos indígenas brasileiros, destacando, pois, se eu estivesse estado entre aqueles povos que se diz viverem ainda sob a doce liberdade das primeiras leis da natureza, asseguro-te que de muito bom grado me teria pintado inteiro e nu(5). Tal fato certamente inspirou o ensaísta a ser ele mesmo o objeto de sua famosa obra literária. Repisando tal aspecto, o que de fato impende colocar em relevo é que Montaigne escreveu sobre o Brasil, mesmo que, eventualmente, “criando” diálogos com os indígenas.

Escrevendo a respeito do bárbaro, explica o pensador que cada qual chama de barbárie aquilo que não é de seu costume, como verdadeiramente parece que não temos outro ponto de vista sobre a verdade e a razão a não ser o exemplo e o modelo das opiniões e usos do país em que estamos(6). Já os selvagens seriam aqueles frutos que a natureza, por si mesma e por sua marcha habitual, produziu(7). Mas, na visão aguçada do pensador, os verdadeiros selvagens seriam aqueles que, com nossa arte alteramos e desviamos da ordem comum.

Enquanto naqueles selvagens [os índios, os verdadeiros frutos da natureza], conforme entendimento do pensador, estão vivas, naturais e vigorosas as virtudes, há nestes, os civilizados e modernos, um verdadeiro “abastardamento” dessas mesmas virtudes. De fato, o homem moderno [ou pós-moderno, ou, eventualmente, aquele ainda que vive uma modernidade tardia no Brasil] se vê totalmente incapaz de reproduzir o ninho do menor passarinho, sua contextura, sua beleza e a utilidade de seu uso, e tampouco a tecedura da mísera aranha(8).

E, Montaigne, emprestando um importante [e atual] pensamento de Platão, faz constar que todas as coisas são produzidas pela natureza ou pela fortuna, ou pela arte; as maiores e mais belas, por uma ou pela outra das duas primeiras; as menores e imperfeitas, pela última(9). Na visão do pensador, os povos bárbaros são assim denominados justamente porque receberam pouca preparação do espírito humano e ainda se encontram próximos de sua naturalidade original.

Ainda são, tais povos do novo mundo, simplesmente governados tão-somente pelas leis da natureza, se ressentindo o pensador de que estas mesmas leis naturais não tenham sido conhecidas antes, e até porque antes havia homens que certamente teriam sabido julgar melhor do que nós a seu respeito(10). E ainda adverte que não podemos chamar de bárbaros com relação às regras da razão, mas não com relação a nós, que os sobrepujamos em toda espécie de barbárie(11).Esse povo não possui qualquer comércio; conhecimento das letras, e muito menos da ciência dos n&uac,ute;meros. Também não possui nenhum título de magistrado nem de autoridade política; não se faz uso de servidão e não se fala em riqueza ou pobreza; inexistem contratos nem sucessões e partilhas de bens, e as ocupações somente são as ociosas, agradáveis e sem qualquer esforço; em vestimentas não se fala, sendo que vivem em região agradável e “temperada” e raramente ficam doentes ou “trêmulos”, e muito menos encurvados com o passar dos anos e a chegada da velhice. Possuem abundância de peixes e carnes, desiguais em relação aos encontrados na região onde vive Montaigne. As construções de tal povo são extensas, onde se podem abrigar duzentas ou trezentas pessoas. A madeira de tal povo é dura, e servem para fazer espadas e grelhas para cozinhar alimentos. Dormem suspensos no teto, em artefato, cujo tecido é de algodão. As mulheres não se deitam com os maridos. Levantam-se ao nascer do sol e somente fazem única refeição, logo pela manhã, mas bebem muito no decorrer do dia(12). Mas antes de comer ouvem um dos velhos, que prega para os demais, repetindo uma mesma frase. As recomendações de caráter ético são no sentido de que devem ser valentes contra os inimigos e também deve ter afeição por suas mulheres, pois são elas que mantém a bebida quente. Não fogem da guerra e a palavra pavor não existe. As vantagens que são obtidas sobre os inimigos, os oponentes, são emprestadas, e ter os braços e as pernas mais rijos é qualidade de um carregador, não virtude(13). Uma das suas atividades diária dos indígenas é dançar, enquanto os mais jovens e vigorosos caçam animais, utilizando-se de arcos.

Os índios raspam seus corpos e se barbeiam com lâminas de madeira ou mesmo de pedra. Para esse povo do mundo novo a alma é eterna e aquelas merecedoras restam guardadas no lugar do céu em que se ergue o sol.

Esse povo descoberto não busca conquistar novas terras, novas vistas, pois as suas terras são férteis e sempre os provê; desejam apenas o que suas necessidades exigem; tudo o que está fora destes limites de necessidade é considerado supérfluo; os da mesma idade se chamam de irmãos, de filhos os que se encontram abaixo; os velhos (inclusive os sacerdotes e os profetas) são pais para todos os outros. Os bens ficam para os herdeiros sem que se fale em qualquer espécie de divisão. A nudez dos indígenas é a materialização da inocência e da simplicidade [ainda não corrompidas pelos modernos civilizados] no modo de ver o mundo. Disso tudo resulta que o filósofo escreve acerca do etnocentrismo; vê o povo civilizado europeu muito mais canibal e bárbaro que os indígenas; o vocábulo “bárbaro” exprime um verdadeiro preconceito de tais povos civilizados em relação àqueles pertencentes ao novo mundo, e o selvagem é aquele homem natural, primitivo, puro e muito melhor que o civilizado, pois o povo indígena detém sabedoria, virtude e simplicidade, atributos escassos na Europa.

Para o pensador, o indígena bem reflete a aspiração, qual seja, o valor e o mérito do homem, que consistem no ânimo e na vontade, pois são onde se abriga sua verdadeira honra; valentia é a firmeza, não das pernas dos braços, mas da coragem e da alma(14). Para Montaigne, ter os braços fortes e as pernas rijas são qualidades de um carregador, e não virtude do homem; os mais valentes são os mais infortunados, e por isso, há derrotas triunfantes que inexoravelmente ombreiam com as vitórias(15). E mais ainda: a verdadeira vitória tem como papel o combate, não a salvação; e a honra da coragem consiste em combater, não em abater(16). Mas há um aspecto ainda relevante, e que cabe neste espaço.

Quando o indígena foi indagado por Montaigne acerca do que considerava “admirável” no mundo novo, esclareceu que os índios chamam os homens de “metade” uns dos outros e que haviam percebido que existiam entre nós homens repletos e empanturrados de toda espécie de regalias, e que suas metades estavam mendigando-lhes nas portas, descarnados de fome e pobreza; e achavam estranho como essas metades aqui necessitadas podiam suportar tal injustiça sem agarrar os outros pelo pescoço ou atear fogo em sua,s casas(17). Algo mudou quatrocentos anos depois? Os seres humanos mudaram?

Em relação ao fato de Montaigne falar com aquele que conduzia seu povo, estando em degrau superior, e questionando o indígena a respeito dos eventuais benefícios que recebia por tal condição, este mesmo indígena respondeu que era o primeiro a marchar rumo à guerra(18). O capítulo escrito acerca dos canibais se traduz em verdadeira e indisfarçável crítica do moralista aos costumes europeus, que os coloca na balança em relação aos costumes do povo pertencente ao mundo novo. O pensador coloca em relevo os canibais justamente para apresentar suas inspiradas críticas em relação ao modo de ver dos europeus, que em tudo o que é novo entendem ser bárbaro e selvagem. Tudo o que existe no outro lado do mar, justamente no local onde vive o povo selvagem, não mais existe no mundo civilizado. O selvagem [ou o bárbaro do mundo novo], nas lentes não deformantes do pensador humanista, tem um viés nitidamente estóico, na justa medida em que tem a virtude como raiz, zela por isso; vive com total desapego ao material; vivem no equilíbrio, desejando apenas e tão-somente o que suas necessidades naturais reclamam, e é, principalmente, proprietário de si mesmo [conforme escreve Sêneca], agindo com inequívoca tranqüilidade sempre, quer nos momentos bons, quer naqueles de aflição, de dor e de sofrimento.
Por fim, e conforme dito alhures, é de somenos importância saber se, de fato, Michel de Montaigne teve contato direto com algum indígena brasileiro. O que sobreleva é aquilo que o pensador deixou escrito na obra perene; impende destacar qual é o verdadeiro recado deixado pelo ensaísta à posteridade.

Notas:

(1)     MONTAIGNE, Michel de. Os Ensaios. Livro I. 2.a edição. São Paulo:Martins Fontes, 2002, p. 320. Tradução:Rosemary Costhek Abílio. Desde logo cabe um primeiro esclarecimento. A descrição do selvagem se deve bem mais à mente criativa do ensaísta e às obras literárias por ele lidas do que de fatos concretos. Inexiste prova cabal de que o pensador, de fato, esteve diante do índio brasileiro. Mais do que isso, também não há prova de que o indígena brasileiro esteve diante do rei da França e expôs livremente sua forma de pensar. Por outro lado, os relatos históricos demonstram que houve uma saudação ao rei da França, por parte daquele novo povo.

(2)     Ao escrever o texto intitulado “À guisa de introdução”, p. XVI, da obra referenciada.
(3)     Conforme dito alhures, as palavras do canibal podem, de fato, pertencer a Montaigne.
(4)     Ou Pirronismo.
(5)     Op. cit., p. 4.
(6)     Op. cit., p. 307.
(7)     Ibidem.
(8)     Op. cit., p. 308.
(9)     Ibidem.
(10)     Ibidem
(11)     Op. cit., p. 314.
(12)     E esta bebida é feita de raiz.
(13)     Op. cit., p. 316.
(14)     Ibidem.
(15)     Ibidem.
(16)     Idem, p. 317.
(17)     Idem, pp. 319-320.
(18)     Idem, p. 320.

Carlos Roberto Claro é advogado; professor [assistente] de Direito Comercial, do Centro Universitário Curitiba [graduação]; especialista em Direito Empresarial; mestre em Direito Empresarial e Cidadania pelo Unicuritiba, e membro do American Bankruptcy Institute [Virginia – USA].