Lembrança do lobo

Os computadores do Pentágono dizem que há deficiências na máquina de guerra norte-americana. Mas que, mesmo assim, é possível sustentar uma guerra contra o Iraque, sem tirar o olho da mira contra o objetivo mais geral, ou seja, o terrorismo internacional. Os computadores do Pentágono são terríveis e o diagnóstico anima o presidente George W. Bush. Qual lobo da fábula de Esopo, ele passa por cima das contestações russas às provas apresentadas e acusa: Saddam Hussein tentou matar papai. Não adianta alguém levantar dúvidas à assertiva. Como na fábula, se não foi Saddam, foi alguém a mando dele.

Nos escritos de Esopo, o inocente cordeiro tentava fazer ver ao lobo glutão que não era ele o responsável pela turbidez da água, vez que estava abaixo, no sentido da correnteza, do faminto animal. O lobo usou o argumento que lhe pareceu definitivo: se não foi você, foi seu pai. Ou seu avô. A fábula se repete. O “cara que tentou matar papai” haverá de se arrepender por isso.

O único obstáculo aparente às pretensões bélicas de Bush não são os custos de uma guerra, nem as deficiências no sistema detectadas pelos computadores. É o Senado. E no Senado os debates desta semana serão definitivos. Bush despreza a ONU. No fundo, está pouco preocupado também com o que diz o Senado ao lhe aconselhar o esgotamento das vias diplomáticas: sua diplomacia, como o lobo da fábula, é a força. É preciso – pensa e repensa até acreditar – restaurar a paz e a segurança na região. A paz americana, bem entendido, nem que seja à bala.

Não se trata de assumir a via antiamericana, na tranqüilidade dos que vislumbram o conflito à distância (se bem que toda guerra neste mundo global é cada vez mais vizinha de todos). Mas Bush deveria ouvir um pouco mais sua própria oposição interna, onde o coro dos que pedem calma e prudência é cada vez mais forte. Temem – e entre estes está um dos principais jornais norte-americanos, o The Times – que a nação de Tio Sam acabe gerando mais adversários que simpatizantes, mais ódio que admiração, mais oposição que apoio à sua luta pela democracia dos outros. “A política externa dos EUA passou a ser guiada por unilateralistas agressivos – alguns dos quais servem hoje o governo Bush – que vêem a cooperação multilateral com desconfiança”, escreveu o jornal num recente editorial.

Enquanto as condições climáticas não forem favoráveis, Bush seguirá fazendo bravatas e adestrando tropas e equipamentos. Mas quando chegar o tempo certo, é pouco provável que não vá colocar em prática o discurso que já experimentou todas as etapas, incluindo aquela de um ataque preventivo.

O Brasil, cujo governo está prestes a mudar de comando, já se manifestou contrário à belicosidade de Bush. Isso, isoladamente, pouco conta. Mas é importante para alimentar a corrente que sustenta a tese de que os superpoderes buscados por Bush não lhe sejam concedidos. Mesmo porque declarar uma guerra para saber se existem armas proibidas em jogo é o mesmo que forçar seu uso. Há outros meios – e o mundo poderá ainda ensinar isso ao lobo Bush – para alcançar o mesmo objetivo.

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