Leis antileis

O projeto de lei recentemente aprovado na Câmara Municipal de Curitiba que proíbe o consumo de cigarros ou qualquer produto fumígeno em recintos de uso coletivo público ou privado do Município tem sido alvo de críticas, divididas entre aqueles que defendem a autonomia individual e aqueles que, em nome da saúde, festejam a proibição. Preferências pessoais à parte, o projeto de lei enseja reflexões sobre a própria atividade legislativa.

Em um Estado de Direito, a lei é absolutamente relevante para a existência de segurança jurídica e ordenação da vida em coletividade fixa o que pode/deve ou não pode/ não deve ser feito, de que modo pode/deve ser feito e qual a conseqüência da não observância do prescrito.

Além de ser instrumento de ordenação social, pode possibilitar as transformações políticas, econômicas e sociais sonhadas no momento constituinte. As leis conformam desejos; são o resultado textual de uma batalha envolvendo interesses individuais e coletivos.

Toda lei, por mais simples que seja, é uma intervenção no cotidiano, uma pauta de conduta e, por essa razão, os cidadãos e o Judiciário devem estar sempre alertas para evitar abusos.

Permite-se a limitação da esfera individual por meio de leis para que seja possível a própria vida em sociedade. Ademais, em um sistema democrático, as leis são elaboradas pelo povo (por meio de seus representantes nas casas legislativas), que deseja e sofrerá as conseqüências da norma elaborada ou seja, os atos de limitação têm origem e destino na própria sociedade, sendo, por isso, dotados de legitimidade.

A atividade legislativa torna-se problemática, entretanto, quando a limitação do cotidiano é abusiva, desrespeita as regras de competência e/ou processo legislativo fixadas pela Constituição, não reflete a vontade popular ou mesmo quando o conteúdo do ato, apesar de ser juridicamente conforme à Constituição, não é razoável ou recomendável no sentido político.

Não é de hoje a multiplicação de leis sobre os mais diversos temas. Isso poderia significar que uma sociedade é bem ordenada, mas, no cenário brasileiro, revela que a sociedade é, em geral, mal ordenada.

Há muitas razões para tal afirmação: na maioria dos casos, falta reflexão sobre o conteúdo da lei, os espaços hermenêuticos do texto e consideração do conjunto normativo já existente sobre a matéria; raramente se investiga a possibilidade de eficácia da norma ou sua relação com seus destinatários; nota-se despreparo quanto à técnica legislativa, que diz respeito à redação e à clareza das leis; prevalece o descaso em relação à responsabilidade e às tarefas atribuídas ao legislador.

Todos esses elementos são frequentemente deixados em livros, pois o importante parece ser solucionar de imediato um problema por meio da criação de uma lei.

Assim, sobressaem leis na maioria das vezes, no calor de episódios de comoção social sem observância da razoabilidade, que impõem ideais perfeccionistas ou mesmo destoam do querer social.

Tem-se notado no Brasil uma profusão de leis autoritárias, do tipo “tudo ou nada”, mas acompanhadas de justificativas simpáticas, como a proteção da saúde pública e do meio ambiente, por exemplo.

As leis a que faltam seriedade, razoabilidade ou legitimidade acabam não sendo reconhecidas pelos destinatários “não pegam”. Impõem-se apenas pela força das penalidades, quando o caminho deveria ser o da sedução e o da educação dos cidadãos.

Exemplos de descrédito são a “lei seca” e a lei paranaense que obriga a tradução, para o português, de palavras em idiomas estrangeiros. Será que a esses diplomas juntar-se-á a lei antifumo?

Ainda, a recém-publicada lei do mandado de segurança, ao invés de aprimorar o instituto, parece ter trazido ainda mais problemas. Constata-se não ser suficiente que a lei siga todos os trâmites formais e seja válida; é preciso que seja também razoável e reta, tanto do ponto de vista constitucional quanto político.

Na maioria das vezes por conta da falta de seriedade e de preparo do legislador, a lei e, em última análise, o direito acaba sendo desvalorizada pelos cidadãos, que perdem o interesse na atividade legislativa e na democracia.

Escândalos no Legislativo contribuem muito para esse cenário, ao enfraquecerem a representatividade do povo e o desempenho, a contento, da função legislativa. O resultado são leis capengas, que prejudicam não apenas os cidadãos, mas o próprio Estado. Instala-se um ciclo vicioso: a lei é criada sem o cuidado necessário e, por isso, precisa de outra lei para corrigir omissões, sendo também inadequada.

Entretanto, as falhas são sempre oportunidades para reflexão e propostas. É por isso que cabe ressaltar a importância de tanto por parte do legislador e seus assessores, quanto dos advogados públicos e integrantes do Poder Judiciário ser estudada a atividade legislativa e seu devido processo.

Cita-se, por exemplo, o trabalho de comissão de juristas para reforma do Código de Processo Penal, espaço de diálogo para que a norma responda adequadamente à realidade e ao futuro que se quer.

Com o estudo para o aprimoramento das leis, busca-se resgatar a credibilidade e a própria razão de ser da função legislativa; realizar, na medida do possível, o processo democrático, envolvendo o cidadão na ordenação social; coibir o abuso e o autoritarismo na elaboração e na aplicação da lei. O cuidado (ou a falta de cuidado) na elaboração das leis revela compromisso (ou falta de compromisso) com os valores de um Estado Democrático de Direito.

Cláudia Honório é procuradora do Município de Curitiba. Especialista em Direito Constitucional pela UniBrasil e Mestre em Direito do Estado pela UFPR. Professora de “Processo legislativo municipal” da Especialização em Direito Público e Administração Municipal da UniBrasil. claudia.honorio@hotmail.com

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