Lei da Improbidade – Outro Vício

Apontei cinco inéditas inconstitucionalidades aninhadas no bojo da perturbadora Lei 8429/92 (edição de 25/8/02), além daquela originária da fraude ao devido processo legislativo, objeto de ação direta perante do STF.

Resumo-as, adiante, em atenção aos que não compulsaram O Estado daquele dia:

1.ª) Ao instituir sanção declaradamente não penal, civil ou administrativa, a Lei de Improbidade criou espécie de sanção inominada, à margem do art. 22,I, da CF/88.

2.ª) Cabia-lhe tão-só regular as sanções especificadas no § 4.º do art. 37 da CF/88. Quando acrescentou diferentes modalidades sancionatórias, praticou excesso de normação.

3.ª) Ao invés de cumprir a ordem de legislar graduando as sanções previstas, adotou padrões fixos e acumulativos.

4.ª) Feriu o princípio da segurança jurídica, tachando de ilícitas condutas divorciadas de princípios, por natureza dotados de extrema fluidez como a honestidade, imparcialidade e lealdade.

5.ª) Seu fundamento de validade integra o sistema de administração pública. Assim, devia conter-se no âmbito da burocracia profissional subordinada; não alçar-se ao nível superior do governo, atingindo os titulares de mandato político.

Outra vez o Ministério Público, por meio de um de seus ilustres agentes, tomou as dores da sacrossanta Lei. Nota-se, porém, que acusou o golpe no desqualificar o crítico. As aventadas inconstitucionalidades se devem à sua “miopia” e “formalismo cúbico” (v. “Cadernos do Ministério Público do Paraná”, v. 5 n.º 6).

Excetuada a desnecessária agressão pessoal, no mérito, a réplica é pobre.

Sustenta o furibundo replicante que a Lei de Improbidade não pode ser inconstitucional, na forma e no conteúdo, porque ela tem seu nascedouro na Constituição.

Eis o primeiro equívoco.

Na “forma” ela é inconstitucional porque, ao longo do trâmite do projeto de lei, restou desatendido o art. 65, parágrafo único da CF/88. Essa fraude ao processo legislativo ganhou incontestável publicidade e notoriedade nacionais. No “conteúdo”

Outrossim, no repertório da jurisprudência do STF, há copioso número de precedentes de inconstitucionalidade, total ou parcial, do conteúdo de leis previstas na Constituição. Logo, a ordem de legislar, por si só, não garante a fidelidade do produto legislativo à Carta Magna. Obviamente, omissões e demasias são constantes no procedimento político de formação da lei.

Acentua, ainda, o impertérrito defensor da Lei 8429/92 o caráter programático do § 4.º do art. 37 da CF/88 e, consequentemente, a contenção de sua eficácia. Para reforçar a tese, ele constrói a frase acoplando-lhe um trecho de José Afonso da Silva de forma a dar a idéia de que o festejado publicista classifica o aludido preceito constitucional como programático. Sem êxito, porém. Na obra citada (Aplicabilidade das Normas Constitucionais, 2000, p. 138), o ilustre jurista apenas define, em tese, a norma programática, sem se referir à Lei de Improbidade. Nem poderia ser diferente, pois o § 4.º do art. 37, da CF/88 não veicula programa nem aponta “norte” ao legislador. Determina, isto sim, a estrita complementação de regra quase toda positivada no próprio enunciado.

De outra parte, o máximo de eficácia de norma constitucional programática que os doutrinadores conseguiram precisar, sobretudo o italiano Renato Alessi, divulgado entre nós pela citada monografia de José Afonso da Silva, consiste em atribuir-lhe o papel único de barreira à legislação divergente do seu substrato ideológico.

Em suma: se a norma revestir natureza programática, não há falar-se em eficácia contida; só possui eficácia contida a norma através da qual o constituinte regulou suficientemente determinada matéria, mas deixou margem para a lei restringir a atuação do poder público, conforme lição de José Afonso da Silva, na mencionada obra.

Não convence também a justificativa de que a Lei de Improbidade graduou as sanções mediante a técnica da diferenciação e da imposição de penas crescentemente mais severas. É que cada espécie de sanção, estipulada nos diferentes artigos, deveria expressar-se por meio de escala, mínima e máxima, conforme à técnica legislativa penal.

Por fim, a retórica moralizante e perfeccionista (“o ideal de repressão à desonestidade de preservação do interesse público”) soa mero palavrório ante o princípio da legalidade objetiva, colocado no portal das garantias fundamentais do cidadão (art. 5.º, II, CF/88), como imperativo categórico do Estado Democrático de Direito.

Agora, a outra inconstitucionalidade, deduzida sem o propósito de magoar a quem quer que seja.

A Lei de Improbidade pune atos administrativos que importem enriquecimento ilícito, que causem prejuízo ao erário ou que atentem contra princípios da administração pública.

Na hipótese de enriquecimento ilícito, não se cogita de culpa, porque o dolo lhe é inerente. De sorte que o silêncio da lei a esse respeito não altera o alcance a prescrição punitiva.

O mesmo não se ajusta à hipótese de prejuízo ao patrimônio público. Por isso que o art. 20 estabelece condição para o ato merecer a coima de ímprobo: a presença de dolo ou culpa. Destarte, além da necessária demonstração de que o ato contém a eiva da improbidade, maculadora do ato, o dolo ou a culpa terão de ser cabalmente demonstrados pela sentença condenatória. Privada esta desses dois pressupostos e da revelação mesma da improbidade, traduzirá intolerável arbítrio.

Caso à parte, no entanto, advém da antijuridicidade camuflada no bojo do art. 11 da Lei 8429/92. O dolo e a culpa não integram a ilicitude do respectivo ato. Basta a simples desobediência aos “princípios” regentes da administração pública, e aos elementos dos tipos ali discriminados, para a caracterização do ato como ímprobo.

Com efeito. Na tradição do nosso direito, a matéria concernente à responsabilidade objetiva, como exceção à regra universal da responsabilidade subjetiva, consagrou-se como matéria de cunho constitucional (art. 194, CF/46).

Ora, tendo em conta que somente a constituinte originária, soberana e incondicionada, detém poder para introduzir a focalizada exceção na esfera jurídica da responsabilidade civil, qualquer norma infra-constitucional que estenda a responsabilidade objetiva aos cidadãos usurpa matéria de exclusiva competência daquela assembléia.

Se esta premissa for correta, a dedução fulmina o art. 11 da Lei de Improbidade como manifestamente inconstitucional, à medida em que inflige punição a quem pratica ato administrativo reputado ímprobo, mesmo inexistente a mácula do dolo ou da culpa.

Reginaldo Fanchin

é membro do Instituto dos Advogados do Paraná.

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