Lei da Improbidade é Inconstitucional

A edição de leis de alcance nacional compete privativamente à União cujo rol de matérias se contém nos vinte e nove incisos do art. 22 da CF/88. Sabidamente, a competência deve ser expressa. Tampouco ela admite extensões, mormente quando discriminada taxativamente.

Desta premissa pode-se concluir pela impossibilidade de a União legislar, para a federação, versando matéria não constante do mencionado preceito constitucional.

Examinada sob esse pano de fundo, a Lei de Improbidade (Lei 8429/92) carece de suporte constitucional.

De fato. O § 4.º do art. 37 da CF/88 preconiza lei punitiva de atos de improbidade administrativa, “sem prejuízo da ação penal cabível”.

Portanto, segundo o querer constitucional, ao integrar o mencionado comando constitucional, o legislador ordinário poderia estabelecer sanções, desde que desprovidas de caráter penal stricto sensu. Todavia, essa liberdade legislativa não é absoluta; ela se contém no campo delimitado pelas competências.

Em outras palavras, frente ao repertório de matérias especificadas pelo art. 22 da CF/88, a lei anti-improbidade somente poderia instituir sanção de caráter civil, comercial ou eleitoral, porque situadas na sua esfera de competência legislativa e disciplinarmente conexas à espécie.

Inobstante, a Lei de Improbidade, no art. 12, criou sanções e as declarou independentes das sanções penais, civis e administrativas. Instituiu um tipo de sanção inominada. Daí o tormento dos seus prosélitos, que jamais conseguiram classificá-la no quadro da ciência jurídica.

Ora, a circunstância de o § 4.º do art. 37 da CF/88 haver ressalvado o cunho penal da sanção permitida à Lei de Improbidade, não eqüivale à autorização para o legislador ordinário introduzir no direito positivo uma espécie sancionatória estranha à nossa ordem jurídica. A resposta à seguinte pergunta reforça a objeção: se a sanção prevista pela Lei de Improbidade não ostenta caráter penal, nem civil e muito menos administrativo, conforme ela mesma enuncia no art. 12, de que província jurídica ela provém?

Em assim procedendo, os órgãos produtores da Lei de Improbidade atuaram, no tocante às sanções, desprovidos de expresso fundamento constitucional de validade, ou seja, legislaram sem competência.

Para José Afonso da Silva “competência consiste na esfera delimitada de poder que se outorga a um órgão ou entidade estatal, mediante a especificação de matérias sobre as quais se exerce o poder de governo”. (“Curso de Direito Constitucional Positivo”, Malheiros, 10.ª ed., p. 470).

Na lição de Carlos Maximiliano, “competência não se presume”. Segundo o Min. Moreira Alves, “a competência, no Direito Público, tem que ter apoio em lei ou na Constituição” (RTJ 137/496), ensinamento que se completa com esta asserção do Min. Francisco Rezek: “Não há competência vestida do estatuto do res nullius a espera de quem dela primeiro lance mão” (RDA 173/106). Ademais, tenha-se presente que “competência é delimitação de poder”. (C.A Bandeira de Melo, Rev. Trim. Dir. Públ., Malheiros, 1993, vol. 3, p. 113).

Abordando a atuação governamental, por “áreas de competência”, José Afonso da Silva destaca a competência legislativa exclusiva da União, enumerada pelo art. 21, I, da CF/88, excetuado o direito processual, as quais denomina de “direito material não administrativo”. (Ob. cit. p. 476).

Assim, o art. 12 da Lei de Improbidade, que engendra “penas” e “cominações”, no bojo de normas de direito material, à margem de competência legislativa específica, é manifestamente inconstitucional.

A inconstitucionalidade do cerne da lei importa a inconstitucionalidade dos seus desdobramentos, pois, consoante o voto condutor de acórdão do STF, são “fulminados pelo fenômeno da inconstitucionalidade conseqüencial ou por arrastamento (JJ Gomes Canotilho) isto é, “a conexão ou interdependência de certos preceitos com os preceitos especificamente impugnados” dos demais dispositivos (“Direito Constitucional”, Almedina, Coimbra, 1991, 5.ª Edição, p. 1.047)ª. (Min. Sydney Sanches – RTJ 163/942).

Dessarte, pode-se inquinar de inexistente o texto integral da Lei 8.492/92.

1. O § 4.º do art. 37 da CF/88 enumera exaustivamente as quatro modalidades de sanções a atos de improbidade administrativa, a saber: suspensão dos direitos políticos; perda da função pública; indisponibilidade dos bens e ressarcimento ao erário.

O texto constitucional confere ao legislador ordinário tão-somente o encargo a atribuir a “a forma e a graduação” a essas classes de penalidade.

No entanto, a Lei 8429/92, no art. 12, I, II e III, acrescentou, ás quatro sanções discriminadas em numerus clausus pelo art. 37, § 4.º, da CF/88, mais as seguintes: pagamento de multa civil, proibição de contratar com o poder público ou receber os incentivos fiscais ou creditícios. Não que falte à União competência para estatuir sanções desse gênero; o que lhe falta, na espécie, é poder legislativo para ir além do espaço balizado pela citada norma constitucional, dentro do qual havia de se conter na geração da especificada lei especial.

Com essa inovação, a Lei 8.429/92 exorbitou do limite da competência estritamente delineada pelo § 4.º do art. 37 da CF/88, e por isso, contraiu o vício da inconstitucionalidade.

2. O § 4.º do art. 37 da CF/88 restringe o campo normativo da lei especial por ele preconizada, quando lhe reserva unicamente a tarefa de proceder à “graduação” das sanções ali taxativamente pormenorizadas e vinculadas a cada tipo específico de ato ímprobo.

Todavia, em frontal desobediência à focalizada determinação constitucional, a Lei 8.429/92 adotou modalidades de sanção rigidamente padronizadas. Com efeito, para ser fiel à prescrição constitucional a Lei deveria ter construído uma escala progressiva a essas penalidades, isto é, os grau de mínimo e máximo, bem como as variáveis circunstanciais de efeito atenuante ou agravante, que importassem aumento ou diminuição das suas “cominações”.

Não se afirme que o parágrafo único do art. 12 da Lei 8429/92 satisfaz à exigência constitucional, porquanto nele há apenas dois critérios de natureza patrimonial que o juiz deve observar na aplicação das “penas” e que nada têm de graduais: a extensão do dano causado ou o proveito patrimonial obtido.

Com relação às demais penas (perda da função pública, suspensão dos direitos políticos, proibição de celebrar contrato administrativo), a fixidez é evidente.

Sendo certo que a Lei 8.429/92 não estabeleceu a necessária graduação das sanções, conforme preceitua o § 4.º do art. 37 da CF/88, a desobediência atrai sobre o seu art. 12 a eiva de inconstitucionalidade.

3. A Lei de Improbidade, no seu art. 11, qualifica como de improbidade os atos atentatórios aos princípios da administração pública e aos deveres de honestidade, imparcialidade e lealdade às instituições.

Embora certa doutrina anterior à CF/88 relutasse no incluir o direito sancionatório na esfera do direito penal, seguramente a nenhum jurista sensato acudirá a perigosa idéia de relegá-lo à margem da conquista teórica da tipicidade punitiva.

Está fora de debate que a tipificação da conduta tida por ilícita, e punível, avulta como salvaguarda do cidadão perante o Estado. É hoje intolerável a consignação, na lei, de tipos abertos e amplos, indefinidos e ambíguos, sem contornos precisos, em cujo vazio cabem múltiplas possibilidades de aplicação e de arbitrário subjetivismo.

A sociedade contemporânea repudia lei que não descreva in concreto a ação proibida, da lei que dificulte o conhecimento detalhado da conduta reputada ilícita e passível da retribuição aflitiva imposta pelo Estado-repressor.

Por isso, Gilmar Ferreira Mendes, Ministro do STF, apoiado em J. J. Gomes Canotilho, professa: “O princípio do Estado de Direito exige que as normas jurídicas sejam dotadas de alguns atributos, tais como precisão ou determinabilidade, clareza, densidade suficiente para permitir a definição das posições juridicamente protegidas e o controle da legalidade da ação administrativa”. (“Questões Fundamentais de Técnica Legislativa”, Rev. Trim. Dir. Públ., Malheiros, 1993, vol. 1, p. 262).

Dissertanto acerca da vigência do Direito, Miguel Reale realça também o seu teor de certeza. “Não possível vigência sem certeza ou sem organização, pois a incerteza e o arbítrio são incompatíveis com a vida jurídica que traduz sempre um esforço contínuo de composição de pretensões e de interesses”.(“Filosofia do Direito”, Saraiva, 1975, 7.ª ed., 2.º vol., p. 530).

Ao examinar os ingredientes contidos na idéia de Direito, Gustav Radbruch põe a certeza em destaque. Diz ele: “Esse terceiro elemento é a segurança, a certeza, condição da paz social. Mas esta segurança, esta certeza, exige, por sua vez, a positividade do direito”. Adiante, completa: “A positividade do direito vem assim a ser, ela própria, um pressuposto da sua certeza. Não pode haver direito que não seja positivo; e, do mesmo modo, pode dizer-se que assim como a positividade é da essência do próprio conceito dum direito certo, assim é da essência do direito positivo o ser certo”. (“Filosofia do Direito”, Coimbra, 1979, 6.ª ed., p. 160).

“A noção de segurança jurídica é, via de regra, identificada com a certeza do direito, como testemunham Alberto Xavier, Geraldo Ataliba, Paulo de Barros, Diva Malerbi e Lu cia Figueiredo”. (“Princípios Constitucionais e Estado de Direito”, José Roberto Vieira, Revista de Direito Tributário n.º 44, p. 99).

De sorte que, ao adotar os tipos francamente abertos, como os inominados “princípios” da administração pública (o princípio, por definição, carece de positividade jurídica) e categorias éticas essencialmente abstratas, assim como “honestidade” e “lealdade”, o art. 11 da Lei 8.429/92, agride o dogma da segurança jurídica do cidadão, elevado à dignidade de preceito constitucional, consagrado no art. 5.º caput da CF/88.

A conseqüência da assinalada insubordinação da referida disposição legal é a sua inconstitucionalidade.

4. Estado, governo e administração constituem os entes fundamentais do Poder Público.

“Estado é, na justa definição de Balladore Pallieri, uma ordenação que tem por fim específico e essencial a regulamentação global das relações sociais entre os membros de uma dada população sobre um dado território, no qual a palavra ordenação expressa a idéia de poder soberano institucionalizado” (José Afonso da Silva, “Curso de Direito Constitucional Positivo”, Malheiros, 10.ª ed., p. 100). Esta categoria é objeto da Ciência Política.

Do Estado Brasileiro, ocupam-se os arts. 18 e seguintes da CF/88.

“O governo é o conjunto de órgãos mediante os quais a vontade do Estado é formulada, expressada e realizada, ou o conjunto de órgãos supremos a quem incumbe o exercício das funções do poder político”. (José Afonso da Silva, Ob. cit. p. 109). Esta categoria é objeto do Direito Constitucional (Idem, ibidem).

Colhe-se do mestre Hely Lopes Meirelles que o governo exerce funções de deliberação político-administrativa, atribuídas a agentes políticos, sobre quem recai a responsabilidade decisória e orientadora da conduta governamental. Devem eles guiar-se pela correção e sensibilidade política. Os atos errôneos dos agentes políticos não maculados de dolo, má-fé, corrupção, culpa manifesta, abuso ou desvio de poder, ainda que lesivos ao patrimônio público, ou a terceiros, não os sujeita à responsabilização. Assim é porque, ao ver do saudoso publicista, os agentes políticos defrontam situações novas e imprevistas, que exigem pronta solução, por isso se lhes concede margem razoável de tolerância por falibilidade natural tanto quanto se admite aos juizes nos seus julgamentos, sobretudo ante a carência ou obscuridade da lei (“Direito Municipal Brasileiro”, Edit. RT, 1985, 5.ª e última edição exclusiva do autor, p. 600).

Do governo ocupam-se os artigos da CF/88 – integrantes do Título IV – relativos à organização dos Poderes Legislativo e Executivo.

“Administração pública é o conjunto de meios institucionais, materiais, financeiros e humanos preordenados à execução das decisões políticas. Essa é uma noção simples de Administração Pública que destaca, em primeiro lugar, que é subordinada ao Poder político; em segundo lugar, que é meio e, portanto, algo de que s serve para atingir fins definidos e, em terceiro lugar, denota os seus dois aspectos: um conjunto de órgãos a serviço do Poder político e as operações, as atividades administrativas. O art. 37 da Constituição emprega a expressão Administração pública nos dois sentidos.” (Hely, Ob. cit. p. 604). Esta categoria é objeto do Direito Administrativo (Idem, ibidem).

Para o mestre Hely Lopes Meirelles, a administração consiste nas funções realizadas por técnicos, especialistas e até trabalhadores braçais, que cumprem e executam tarefas puramente administrativas, de quem se exige exação e perfeição técnica no desempenho dos atos de ofício. Estes respondem pelos atos lesivos decorrentes de imperícia, imprudência e negligência, no desempenho de suas atribuições profissionais. (Ob. e loc. cit.).

Da administração pública, ocupam-se os arts. 37 a 43 da CF/88.

A Lei de Improbidade regula o preceito estatuído no § 4.º do art. 37 da CF/88, que dispõe sobre a administração pública das três esferas federadas.

É cânone da técnica legislativa que o parágrafo desdobra o comando veiculado pelo artigo, do qual é apêndice ou complemento, segundo a unânime doutrina (cf. Hely Lopes Meirelles, “Direito Municipal Brasileiro”, Edit. RT, 1985, 5.ª ed., p. 500; José Afonso da Silva, “Manual do Vereador”, Ed. do Ministério do Interior, 1969, p. 90; RDP 91/238 e RTDP 1/259 e decisão do STF – RTJ 147/757 e 793). Por certo, a improbidade enunciada no § 4.º, como núcleo de lei ordinária, há de conter-se nos limites da administração pública, de caráter instrumental, assim como conceituada pelo Direito Administrativo, porque o art. 37 “caput” cinge-se à essa dimensão do Poder Público.

Por isso, ao incluir o representante da soberania popular (art. 1.º, parág. único da CF) entre os agentes públicos passíveis de sanções previstas à conduta ímproba, a Lei de Improbidade rompeu o círculo de ferro traçado em seu derredor, pela Constituição, e ascendeu ao plano superior do governo cuja natureza política o subtrai do alcance da lei comum. Sendo, como é, objeto do Direito Constitucional, o estatuto do governante mandatário se inicia e se encerra no âmbito da Carta Magna. Logo, inatingível pelo legislador infra-constitucional.

Em rigor, a vertente constitucional da Lei de Improbidade lhe atribui poder para colocar todo e qualquer servidor do Estado sob sua regência, exceto o mandatário provido mediante o processo político-eleitoral. O instrumento de representação, outorgado pela fonte da soberania estatal, que é o mandato político, paira acima do poder legislativo ordinário.

Ademais disso, entre as sanções endereçadas ao servidor ímprobo, pelo art. 37, § 4.º, da CF/88, figura a perda da função pública. Antes de se forçar a inclusão do mandato político na designação genérica de “função pública”, primeiramente, deve-se ter em mente que, no art. 37, I, que dispõe sobre a acessibilidade ao serviço público profissional, a função pública está justaposta a cargo e emprego. Da mesma forma, impõe-se considerar a competência do Presidente da República – art. 84, VI, b – para extinguir, por decreto executivo, cargo e função pública, quando vagos. Na linguagem articulada pela Constituição, a função pública tem ostensiva conotação eminentemente administrativa, e não política.

Afronta o texto constitucional a extensão, ao portador de mandato político, da penalidade reservada ao funcionário administrativo. Sobretudo, levando-se em estima o escólio de José Afonso da Silva, para quem o mandato político representativo constitui elemento básico da democracia representativa. Ensina o mencionado autor: “Nele [mandato] se consubstanciam os princípios da representação e da autoridade legítima. O primeiro significa que o poder, que reside no povo, é exercido em seu nome, por seus representantes periodicamente eleitos, pois uma das características do mandato é ser temporário. O segundo consiste em que o mandato realiza a técnica constitucional por meio da qual o Estado, que carece de vontade real e própria, adquire condições de manifestar-se e decidir, porque é pelo mandato que se constituem os órgãos governamentais, dotando-os de titulares, e, pois, de vontade humana, mediante os quais a vontade do Estado é formulada, expressada e realizada, ou, por outras palavras, o poder se impõe”. (“Curso de Direito Constitucional Positivo”, Edit. Malheiros, 1995, 10.ª ed., p. 138). Por sua vez, o ministro Célio Borja, opinando sobre controvérsia referente à diplomação de prefeito, teve a oportunidade de combater a confusão entre cargo e mandato, lição que concorre para realçar a indevida inclusão do mandatário político nas malhas da Lei de Improbidade. Assim se expressou o ministro: “Entendo que o que está em causa não são cargos, são mandatos. É de profligar-se o vezo difundido entre nós, de referir a eleição a cargos, quando, na verdade o verdadeiro objeto do pleito são mandatos. A doutrina clássica mais rigorosa em matéria de linguagem, fala sempre em mandato eletivo, não se permitindo esse tipo de confusão”. (RE 127.246-5 – DF – DJU 19/4/96).

Ante o exposto, as expressões “por eleição” e “mandato”, constantes do art. 2.º, bem como a expressão “mandato”, constante do art. 9.º, da Lei 8.429/92, são inconstitucionais.

5. O trâmite do projeto de lei, gerador da Lei 8.429/92, iniciou-se na Câmara dos Deputados. Seguiu depois para o Senado Federal, ai recebendo numerosas emendas. De acordo com o processo legislativo, a emendas introduzidas pelo Senado foram submetidas à Câmara dos Deputados. Nesta Câmara, sob a “síndrome da improbidade do governo Collor de Mello” (N. Jobim), houve acordo político resultando na fusão das duas centenas de propostas em substitutivo único. Por haver o novo texto modificado o projeto recebido do Senado, a este deveria retornar, conforme determina do art. 65, parágrafo único, da CF/88. Não só não retornou, como foi enviado ao presidente Collor que, acuado, converteu-o nesse arremedo de Lei.

Argüindo a manifesta inconstitucionalidade, partido político aforou uma ação direta, perante o STF, a qual, embora não tenha obtido a suspensão liminar, ainda pode ser provida no mérito.

Reginaldo Fanchin

é membro do Instituto dos Advogados do Paraná.

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