Lei 10.792/03: um novo modelo de interrogatório

Com o advento da Lei 10.792/03 avançou-se em direção aos parâmetros constitucionais estabelecidos para o processo penal. É bem verdade que as modificações implementadas não promovem a consolidação de um processo penal democrático, mas representam a superação de um entrave há muito constatado pela doutrina brasileira.

A Constituição Federal, há mais de quinze anos, ao tratar das questões criminais em seu aspecto processual, consagrou o sistema acusatório; e, ainda que as regras infra-constitucionais não tenham sido adequadas à não tão nova realidade, deu-se mais um passo neste sentido, ao se assegurar o contraditório e a realização de uma defesa técnica por ocasião do interrogatório.

Há que se destacar que, antes mesmo deste novo texto legal, era possível a adoção do mesmo, ou similar, procedimento, pois as diretrizes já estavam fixadas constitucionalmente, bastando, para tanto, que se fizesse uma leitura dos dispositivos infra-constitucionais a partir de um perspectiva constitucional, o que, ressalta-se, impõe-se seja observado no que respeita aos pontos de conflito que ainda carecem de uma tratativa adequada à atual ordem jurídica. A questão é solucionada por meio de uma filtragem constitucional dos preceitos que, na era getulista, foram inspirados pelos regimes facista e nazista.

Por óbvio, permanecendo-se adstrito ao propósito de uma breve incursão ao tema interrogatório, não se fará uma abordagem das possibilidades não observadas na atuação, em sede criminal, do poder jurisdicional, mas tão somente algumas considerações pertinentes aos progressos alcançados com as modificações promovidas no Código de Processo Penal.

Em que pesem as imprecisões de técnica legislativa, haja vista que, no mesmo texto são tratadas questões próprias da Execução Penal (arts. 1.º, 4.º, 5.º, 6.º, 7.º e 8.º), e de alterações no Código de Processo Penal (arts. 2.º e 10), não se pode negar os aspectos positivos de seu conteúdo no que concerne ao interrogatório, objeto desta abordagem.

Assim, o se apresenta é uma análise articulada sobre o tema, não se vinculando à ordem dos artigos, mas aos assuntos pertinentes, restringindo-se exclusivamente ao interrogatório.

1. Local para a realização do ato

Nos termos do § 1.º acrescido ao art. 185 do CPP, tem-se que:

O interrogatório do acusado preso será feito no estabelecimento prisional em que se encontrar, em sala própria, desde que estejam garantidas a segurança do juiz e auxiliares, a presença de defensor e a publicidade do ato. Inexistindo segurança, o interrogatório será feito nos termos do Código de Processo Penal.

A partir da redação contida no texto legal em questão, não se pode ter como modificada a regra, estabelecida no art. 792, caput, do CPP, de que “os atos processuais serão, em regra, públicos e se realizarão nas sedes dos juízos e tribunais”. O que se criou foi uma exceção para a realização do interrogatório do acusado preso.

Quanto a este (acusado preso), o texto legal não deixa qualquer margem de dúvida: deve ele ser interrogado no estabelecimento prisional em que se encontrar. Não há, aqui, qualquer discricionariedade, sim uma determinação, que somente não deve ser observada quando inexistir segurança para tanto.

A opção legislativa, decorrente, por certo, das dificuldades evidenciadas no transporte de alguns presos, não justifica uma generalização a alcançar todos os encarcerados. Basta ver que nas Comarcas do interior, onde os problemas de segurança advindos do deslocamento não se mostram relevantes, não há uma justificativa plausível para tanto.

Assim, nos locais onde se exige um grande dispêndio, econômico e humano, no transporte dos presos para o interrogatório, ante a estrutura existente, a regra provavelmente há de ser seguida, entretanto, no interior, onde não existe o mesmo aparelhamento, dificilmente será possível seu cumprimento, de maneira que, acredita-se, somente serão realizados interrogatórios nas Delegacias de Polícia em casos excepcionalíssimos, ainda que a redação do dispositivo não permita qualquer margem de flexibilidade em sua interpretação.

2. Presença e participação do Ministério Público e do Advogado

Com a alteração da redação do art. 185, caput, do CPP, assegurada restou a presença do Advogado por ocasião do interrogatório, como se vê:

O acusado que comparecer perante a autoridade judiciária, no curso do processo penal, será qualificado e interrogado na presença de seu defensor, constituído ou nomeado.

Há que se destacar, por oportuno, que a presença do Ministério Público ou do Querelante deve igualmente ser assegurada, sob pena de ser violado o princípio da isonomia processual. Surge, assim, a necessidade de intimação de ambos (Acusação e Defesa) para o interrogatório, salientando-se, por uma questão lógica, o local onde o mesmo se realizará, haja vista que suas presenças são imprescindíveis à realização do ato.

Superados se revelam, agora, alguns obstáculos à democratização do processo penal, dentre eles, v.g., a vedação do contraditório, como previsto no redação anterior do art. 187, do CPP, que dizia: “O defensor do acusado não poderá intervir ou influir, de qualquer modo, nas perguntas e respostas”.

A ausência do Advogado por ocasião da realização do ato, até então considerada sem qualquer relevância, ainda que afetasse significativamente a defesa, passa a ser causa de nulidade absoluta, haja vista a lesão que se perpetra aos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, consagrados no art. 5.º, LV, da CF.

Nesta mesma linha de raciocínio, não se poderá mais ter o interrogatório como um ato privativo do juiz, pois a presença do Advogado e do Ministério Público não somente é devida, como também se lhes assegura a participação. É o que se encontra expresso na nova redação do art. 188, do CPP:

Após proceder o interrogatório, o juiz indagará das partes se restou algum fato para ser esclarecido, formulando as perguntas correspondentes se o entender pertinente e relevante.

Em que pese a nova tratativa, não se pode afirmar que o princípio do contraditório foi plenamente assegurado, pois o que se determina, nos termos da lei, é que o Juiz, concluídos seus questionamentos, indagará as partes sobre fato a ser esclarecido, cumprindo a ele definir sobre a pertinência e relevância do pretendido esclarecimento, e mais, de que maneira devem ser formuladas as perguntas para tanto.

Não se está, portanto, oportunizando-se às partes a possibilidade de fazerem perguntas, mas simplesmente de indicarem pontos a serem esclarecidos. Fosse outro o espírito de lei, seu conteúdo se assemelharia ao contido no art. 212, do CPP, ao fazer referência à inquirição das testemunhas.

Não obstante este tratamento restritivo, é salutar que no exercício de sua atividade, o Magistrado, em louvor ao princípio do contraditório, permita a formulação de reperguntas, pautando-se em parâmetros zetéticos de interpretação a justificar sua postura.

Ademais, com a modificação, atendeu-se, ainda que não plenamente, a um reclame doutrinário surgido após a Constituição Federal/88, o qual se coaduna com o posicionamento aqui sugerido.

Cumpre salientar que, independente da postura adotada, havendo o indeferimento de algum questionamento (ou fato a ser esclarecido), a indagação e a razão do indeferimento devem constar do termo, a fim de que se possibilite posterior questionamento através de uma das vias impugnativas existentes.

2.1 A consagração da ampla defesa

Salutar garantia foi implementada no § 2.º acrescido ao art. 185, do CPP, ao determinar que:

Antes da realização do interrogatório, o juiz assegurará o direito de entrevista reservada do acusado com seu defensor.

Veja-se que, mais uma vez, observa-se uma regra impositiva, um imperativo, não uma faculdade conferida ao Juiz. Portanto, não tendo o acusado constituído Advogado, deverá este ser nomeado, sendo-lhe garantido o contado pessoal e reservado com o acusado, sob pena de nulidade absoluta.

Poderá o acusado, então, antes de exercer seu direito de autodefesa (neste momento consubstanciado no seu direito de audiência), receber orientações de quem realizará sua defesa técnica, ampliando-lhe as possibilidades defensivas.

Um problema não superado é o dos Advogados ad hoc que, descomprometidos com a defesa do acusado, em não poucas vezes, geram prejuízos irreparáveis à mesma. Tal situação se agrava a partir da nova disciplina legal, pois o contato pessoal, neste momento, é de extrema relevância na promoção da defesa dos interesses do acusado em juízo.

Por oportuno, o texto legal não permite, como se pode pretender, definir a natureza jurídica do interrogatório como sendo exclusivamente um meio de defesa. O ponto é que, sendo tratado pelo Código de Processo Penal no Título VII (da prova), não se encontrava ele disciplinado pelas regras pertinentes à produção das mesmas, o que agora é superado.

Impõe-se, por conseguinte, concluir que no interrogatório o acusado exerce seu direito de autodefesa, mas também pode produzir provas para o processo, agora com a participação da Acusação e da Defesa, sendo-lhe conferidos contornos de prova em seu sentido técnico.

3. Interrogatório e seu duplo conteúdo

Como se sabe, o interrogatório se realiza em dois momentos: um de identificação e outro de mérito. Nos termos da nova disciplina contida nos arts. 186, caput e 187, do CPP, o tema se revela bem delineado.

O ato do interrogatório deve ter seu início com a qualificação do acusado. Entendendo-se, aqui, que a qualificação envolve a identificação, a classificação, a individualização de alguém em um determinado grupo, é possível se admitir que quando o art. 187, caput, diz que “o interrogatório será constituído de duas partes: sobre a pessoa do acusado e sobre os fatos”, faz referência justamente ao interrogatório de identificação e ao interrogatório de mérito.

Assim, quando o mesmo artigo, em seu § 1.º, menciona que o interrogando será indagado sobre “a residência, meios de vida ou profissão, oportunidades sociais, lugar onde exerça a sua atividade, notadamente se foi preso ou processado alguma vez e, em caso afirmativo, qual o juízo do processo, se houve suspensão condicional ou condenação, qual a pena imposta, se a cumpriu e outros dados familiares e sociais”, está-se diante da qualificação, que envolve, também, os dados pessoais do acusado.

Inclusão interessante, que merece destaque, é a necessidade de se perguntar sobre as oportunidades sociais, as quais podem ser entendidas, quando inadequadas e insatisfatórias, como atenuantes inominadas (art. 66, CP) em eventual condenação.

Superada esta etapa, inicia-se o interrogatório de mérito, onde o acusado será indagado sobre as questões descritas no novo § 2.º do art. 187, do CPP.

Devem ser mencionados, ainda, os arts. 189 e 190, do CPP, que, tratando do mérito, mantêm, com nova redação, o que se fazia presente no art. 188, p. único e no próprio art. 190, do mesmo codex.

3.1 Direito ao silêncio

Com o advento da nova lei, o texto atribuído ao art. 186, do CPP e seu parágrafo único, põe fim a uma prática, ainda residualmente existente, mas há muito superada, de se advertir o acusado de que seu silêncio poderia ser interpretado em prejuízo da própria defesa. Veja-se:

Art. 186. Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas.

Parágrafo único. O silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa.

O direito constitucional ao silêncio (art. 5.º, LXIII, CF) independe deste novo dispositivo para ser viabilizado, mas, agora, não sobejam quaisquer dúvidas sobre a amplitude de sua aplicabilidade.

Neste contexto, é importante lembrar que tal direito somente pode ser exercido em relação ao interrogatório de mérito, nunca no de identificação. Silenciando o acusado neste momento pratica a contravenção de recusa de dados sobre a própria identidade ou qualificação (art. 68, LCP).

4. Desnecessidade de nomeação de curador ao acusado menor

Com o novo Código Civil reduziu-se de 21 para 18 anos a maioridade civil e, a partir de então, surgiu um embate doutrinário sobre a produção, ou não, de efeitos no âmbito criminal.

No que concerne à nomeação de curador, com a Lei 10.792/03 a questão está solucionada, pois em seu art. 10, expressamente revoga o art. 194 do CPP, o qual dizia que: “se o acusado for menor, proceder-se-á ao interrogatório na presença de curador”, fazendo referência o acusado com idade superior a 18 e inferior a 21 anos. A partir deste contexto, sistematizando-se a matéria, deve ser entendido que os arts. 15 e 262 do CPP igualmente encontram-se revogados.

5. O momento para a realização do interrogatório

O interrogatório continua podendo ser realizado a qualquer tempo antes do trânsito em julgado da sentença, como já se encontrava previsto no art. 196, do CPP: “A todo tempo, o juiz poderá proceder a novo interrogatório”.

Ocorre que, antes, sem que fosse possível qualquer interferência das partes, o Magistrado, livremente e por um interesse pessoal em seu próprio convencimento, poderia, de ofício, optar por realizar um novo interrogatório.

A real necessidade não poderia ser um elemento motivador caso o Juiz não entendesse dessa maneira e, como às partes não era franqueada a postulação, não se tomava conhecimento dos motivos que conduziam a um novo interrogatório, ou dos que, ainda que extremamente necessário, impediam sua operacionalização. Assim, um segundo interrogatório, com raríssimas exceções, não se realizava.

Entretanto, com o advento do novo texto do art. 196, do CPP: “A todo tempo o juiz poderá proceder a novo interrogatório de ofício ou a pedido fundamentado de qualquer das partes”, resta a oportunidade de, por meio de um pedido, obter uma manifestação fundamentada do Magistrado, isto por força do princípio constitucional da motivação das decisões (art. 93, IX, CF).

Faz-se mister salientar, ainda, que com a nova redação não é razoável pensar-se numa mera faculdade do Juiz, sob a alegação de que a lei utiliza o verbo poder, pois o que se tem é o verbo sendo utilizado no sentido do poder-dever próprio da atividade jurisdicional, uma vez que o pleito não pode ser desarrazoado.

Não sendo acatado, sem qualquer motivação, o pedido de um novo interrogatório, inquinado estará o feito, a partir daquele momento, por uma nulidade absoluta, haja vista ter sido ferido, no mínimo, e o da motivação das decisões.

6. Direito intertemporal

O art. 9.º, da Lei 10.792/03, prescreve que a mesma entra em vigor na data de sua publicação, o que ocorreu em 2 de dezembro de 2003, data a partir da qual deverá ter incidência sobre todos os atos a serem realizados que estejam por ela disciplinados.

Os atos pretéritos, já realizados nos processos em andamento, não são afetados, não sofrendo, por conseguinte, qualquer prejuízo, pois não precisam ser renovados. É assim o regramento do art. 2.º, do CPP: “a lei processual aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior”.

Em sede de processo penal a aplicação intertemporal da lei é disciplinada pelo princípio da aplicação imediata da lei, não havendo que se falar em irretroatividade, e muito menos em retroatividade. Não é admissível discussões sobre o quanto a lei é mais ou menos benéfica ao acusado, haja vista que o que se objetiva é uma melhor qualidade da prestação jurisdicional, sendo irrelevante se a nova situação é mais gravosa para o acusado.

Considerações finais

O interrogatório, a partir da entrada em vigor da Lei 10.792/03, desenvolve-se a partir de um novo modelo, como restou demonstrado, sendo superados obstáculos, até então insuperáveis na praxis, que impediam a consolidação de valores notadamente democráticos quando de sua realização.

Foram abordados apenas os pontos mais significativos do novo texto legal, até porque, algumas questões contempladas na vigente lei apenas conferem uma nova roupagem à questões já asseguradas pelo texto anterior, e outras não mantém direta vinculação com o interrogatório, objeto desta breve abordagem.

Enfim, o que se conclui é que, ainda que as alterações apontadas não sejam aptas a solucionar todos os óbices de um código ancião, revestem-se de importância significativa na demonstração de que há, inquestionavelmente, a possibilidade de se ver consolidar, no sistema processual penal brasileiro, um processo democrático, e, por conseguinte, justo e efetivo.

A presente análise não pretendeu esgotar o tema, mas apresentar o delineamento deste novo modelo de interrogatório, sabendo-se que algumas posturas, como se mencionou, não chegarão, ao menos em princípio, a se efetivarem. Quanto a elas, somente após as manifestações dos Tribunais é que se saberá se serão por estes exigidas, ou, ainda que lesivas, toleradas.

Vladimir Stasiak

é mestre em Direito, professor da Facnopar (Apucarana/PR), Unopar (Arapongas/PR) e Integrado (Campo Mourão/PR). Coordenador do NPJ/ Unopar, bacharel em Teologia e advogado.

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