Legalidade do regime disciplinar diferenciado e efeitos na ressocialização do condenado

A Resolução n.º 26 de 4/5/01, da Secretária da Administração Penitenciária de São Paulo, alterada parcialmente pela Resolução n.º 95, de 26/12/01, autorizaram, em conjunto, o funcionamento do chamado regime disciplinar diferenciado (RDD), nos estabelecimentos prisionais de Taubaté, Iaras e Presidente Bernardes – SP (CRP), regime este aplicável aos líderes e integrantes de facções criminosas, e presos, cujo comportamento necessite de tratamento específico (art. 1.º). Prevêem ainda, que o tempo máximo de permanência do condenado neste regime, na primeira inclusão será de 180 dias, nas demais de 360 dias, não computando nestes períodos, os dias em que o sentenciado permanecer em trânsito, em dependências de unidades prisionais, onde o regime diferenciado não tenha sido instituído.

A natureza da determinação, resulta obviamente pergunta que não quer calar. A imposição do regime prisional diferenciado ou de outras regras relativas ao cumprimento da pena, por meio de resolução da Administração Penitenciária, é compatível com as normas da Lei de Execução Penal e do Código Penal? O regime disciplinar diferenciado é Constitucional?

Para encontrarmos respostas a estas indagações, faz-se necessário analisar a questão sob vários ângulos. Em primeiro lugar, na tentativa talvez de legitimar às resoluções, foi editada a Medida Provisória n.º 28 de 4 de fevereiro de 2002, prevendo respectivamente nos artigos 1.º e 2.º que: “A prática de fato previsto como crime doloso, constituí falta grave e sujeita o preso ou condenado, sem prejuízo da sanção penal, a regime disciplinar diferenciado, com as seguintes características: I – Duração máxima de trezentos e sessenta dias, sem prejuízo de repetição da sanção por nova falta grave da mesma espécie; II – cumprimento de pena em cela individual, na qual o condenado poderá permanecer por até dezesseis horas diárias, etc.

A princípio a constitucionalidade da Medida Provisória parece discutível, tendo em vista que a Emenda Constitucional n.º. 32, de 11/09/01, veda a edição de Medida Provisória relativa às matérias de: direito penal, processual penal e processual civil (art. 62, § 1.º, inciso I, “b”). Portanto, a instituição de regime prisional diferenciado por Medida Provisória, ou de qualquer outra regra relativa ao cumprimento ou execução da pena é inconstitucional. Neste aspecto, assinala Alessandra Teixeira, que a Medida Provisória, foi expedida sob um clima de pânico social, precária por sua própria natureza legislativa, exorbitando a competência material possível para essa espécie legal, resumindo seu conteúdo ao suprimento de direitos e garantias individuais dos condenados, resguardando por um estranho afastamento jurisdicional e uma superdimensionada atuação administrativa.

De plano excluída a constitucionalidade da Medida Provisória, restaram as resoluções, cuja ilegalidade parece também flagrante. A princípio porque, esbarram na determinação contida no artigo 24, inciso I, da Magna Carta, que atribui competência a União, aos Estados e ao Distrito Federal para: “Legislar concorrentemente sobre “direito penitenciário”. Ainda que indiretamente as resoluções afrontam o artigo 60, § 4.º, IV da Constituição Federal, pois suprimem direitos e garantias individuais, o que não se admite sequer por emendas. Se é vedado legislar por Medida Provisória sobre tais matérias (inclusive execução penal), impossível fazê-lo por resolução, não outorgando a Constituição tal competência legislativa à Administração Penitenciária.

As resoluções exorbitam sua competência no âmbito administrativo, tentando situar-se no ordenamento jurídico como “leis”, por conseguinte infringindo o princípio da reserva legal (art. 5.º, XXXIX da CF/88 e art. 1.º do CP, art. 15. 1.º do PIDCP, art. 9.º da CADH), cuja fórmula é mais do que conhecida: “Nullum crimen, nulla poena, sine previa lege”. Acrescente-se que: Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei (art. 5.º, II da CF/88). Considerando que os princípios da reserva legal e da legalidade são pedra de toque de todos os ordenamentos jurídicos contemporâneos; o primeiro de índole constitucional-penal, encontrando-se conectados ao ideal de Estado Democrático de Direito (artigo 1.º da CF/88), estes impedem o exercício do Poder legiferante por meio de resolução.

Esta transgressão não deve ser admitida, nem mesmo em razão das intenções “politicamente corretas” da Administração Penitenciária, mesmo porque a Constituição Federal impõe à Administração de qualquer dos Poderes do Estado, obediência estrita ao princípio da legalidade (art. 37). Lembra Alberto Silva Franco, que assim como o vocábulo honestidade que diz tudo e por si só basta, ocorre com o vocábulo legalidade, ela existe ou não existe, meia ilegalidade é uma gritante contradição lógica e não importa que o formulador de normas entenda subjetivamente, que as normas anteriores às produzidas por ele tinham um conteúdo mais significativo de ilegalidade. Seu dever não é o de fazer um texto com menos ilegalidade, mas o de articulá-lo conforme a Constituição Federal, pouco interessando que as normas anteriores não tenham sido objeto de argüições críticas, pois isso não dá às novas regras blindagem suficiente para torná-las inexpugnáveis, e o argumento de que o administrador em situações-limite, exerce legítima defesa da sociedade não o alforria da prática de legalidade.

Corretamente coloca Ela Wieko V. de Castilho que, o Estado de Direito liberal inaugurou um sistema de legalidade e, do ponto de vista lógico, o sistema abrange todo o campo de atuação do Estado e especificamente, com relação à execução penal, que constitui o aspecto dinâmico e concreto do Direito Penal, o princípio da legalidade penal parece ser um desdobramento lógico inevitável.

Aqueles que conhecem a maneira e o local de cumprimento da pena no RDD ou CRP percebem, que estes estabelecimentos submetem o condenado a uma espécie de punição disciplinar coletiva, cumprida em isolamento celular, pelo prazo de 180 a 360 dias (art. 4.º), nos quais a remição é aplicada na fração de um dia de desconto na pena por seis dias de trabalho (art. 5.º, VII), “permitindo” que o detento saia da cela para o banho de sol, pelo prazo mínimo de uma hora por dia (art. 5.º, II).

Como se observa, o fator de um dia de desconto na pena, para cada três dias de trabalho do condenado, previsto na Lei de Execução para a remição (art. 126, § 1.º), fica ilegalmente prejudicado. Por outro lado, o Código Penal prevê (art. 34, § 1.º), que o condenado no regime fechado, fica sujeito a trabalho no período diurno e a isolamento durante o repouso noturno. Notadamente, há disparidade entre a regra do Código e aquela ditada nas resoluções, para o cumprimento da pena no regime fechado, pois no RDD permite-se o “isolamento contínuo” do condenado, podendo este sair da cela somente para banho de sol. Não somente o prazo para a aquisição da remição fica prejudicado, pois aparentemente naquele regime, pelas características que apresenta, o trabalho do condenado é restringido, o que constitui afronta ao disposto nos artigos 28 e 41, II da LEP, impedindo ainda, que o condenado fique fora da cela durante o dia, como vai acontecer, violando assim, as regras do regime fechado (art. 34, § 1.º, CP).

No regime diferenciado ao contrário do que estipula a Lei de Execução, permite-se que o isolamento do condenado na própria cela (art. 53, IV), exceda o prazo trinta dias (art. 58), tornando obsoletas tanto essa regra como as garantias de que, a falta disciplinar que importe no isolamento deva ser apurada por procedimento disciplinar, assegurando ao condenado as garantias do devido processo legal (art. 59, LEP, art. 30. 2, RMO) e a motivação da decisão que aplica esta punição (art. 59, par. único, LEP), permitindo o isolamento do condenado sem decisão judicial motivada ou mesmo sem a sua comunicação ao juiz da execução (art. 58, par. único, LEP).

Na acepção de Alberto Silva Franco, sendo indiscutível que o regime disciplinar diferenciado contém uma sanção, está em dissonância com a Lei de Execução Penal que no artigo 53 enumera as sanções disciplinares admissíveis, e é óbvio que a autoridade administrativa estadual na área penitenciária, não teria condições legais de criar novas sanções disciplinares, o que a levou a utilizar-se de um estratagema malicioso e eticamente reprovável. Como assevera Julio F. Mirabete, o tempo de duração da sanção de isolamento deve ser determinada pela lei, não se justificando uma duração indeterminada ou variável, passível de comprometer a saúde física ou mental do condenado, ou os métodos destinados ao processo de reinserção social.

Pode-se afirmar que nos termos da resolução, basta que o condenado seja considerado integrante de alguma facção criminosa, para seja submetido ao “isolamento penitenciário”, sem que tenha ao menos sofrido punição ou praticado falta disciplinar grave, não dependendo o “isolamento” por prazo superior a trinta dias, da instauração de qualquer procedimento administrativo. Assim, o regime diferenciado não define adequadamente quais são os seus destinatários, e ao invés adotar uma tipologia de condutas que permite revelar o perfil dos condenados que poderiam ser submetidos ao referido regime, optou pela técnica dos conceitos porosos, das expressões vagas, das cláusulas gerais, permitindo que qualquer condenado venha a ser considerado como “líder ou integrante” de facção criminosa ou sujeito a tratamento específico.

Não é por demais lembrar que, ao condenado “presumidamente perigoso” ou não, integrante ou não de “facção criminosa”, são assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei (art. 3.º da LEP, art. 38 do CP), prevendo as regras mínimas da ONU, que o sistema penitenciário não deve acentuar os sofrimentos que são inerentes à pena privativa de liberdade (item 57, 2.ª parte), o que impede a imposição de pena suplementar não prevista em lei. Não se admite a restrição de direito ou garantia do condenado, quando não houver lei que autorize.

Dessa maneira, o condenado, mesmo após a decisão condenatória definitiva, permanece com o direito de ser respeitado em sua integridade física e moral (art. 5.º, XLIX da CF/88, art. 40 da LEP, 38 do CP, art. 5.º, 1 da CADH), devendo ser respeitada na execução da pena a condição de dignidade humana do recluso (art. 1.º, III da CF/88, art. 10, 1 do PIDCP, art. 5. 2 da CADH). O excessivo prazo de internação no RDD, pode trazer conseqüências prejudiciais para o condenado, daí que este regime é dissonante dos referidos mandamentos. De outra parte, o artigo 1.º da Lei de Execução, impõe com um dos objetivos da execução penal: “Proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”. No Regime Disciplinar diferenciado ou no Centro de Ressocialização Penitenciário, eufemisticamente e ao contrário, pelas características que apresenta pode provocar a “dissocialização” do recluso, tornando a pena e a prisão ainda mais contraproducentes na sua finalidade.

Apesar das dificuldades instrumentais que enfrenta, a intenção ressocializadora, encarnada sob o prisma de prevenção especial positiva da pena, não deve ser abandona pelo Estado. Esta finalidade não é letra morta, constituindo-se ainda como parte integrante do patrimônio de muitos ordenamentos penais, recomendada expressamente por exemplo, pela Constituição da Itália (art. 27, 2), do México (art. 18, I), da Espanha (art. 25, 2), da Nicarágua (art. 39), de El Salvador (art. 27, 2); finalidade esta a ser perseguida também por nosso ordenamento (art. 59, CP e art. 5. 6 da CADH), o que segundo Manuel V. Arechiga, de alguma forma, constitui argumento mais favorável à tese prevencionista especial.

Para Anabela M. Rodrigues, não seria exato que a idéia de ressocialização, é um conceito velho ou esquecido na generalidade dos países europeus, nos Estados Unidos da América do Norte e na Grã-Bretanha, pois o abandono teorético da intenção ressocializadora, nos países onde ocorreu, teve uma tradução pragmática apenas parcial, não quebrando certa continuidade na elaboração de programas de socialização. Para a autora, as investigações sobre o tratamento do delinqüente não pararam durante os anos oitenta, se assistindo nos últimos anos, a uma renovação do pensamento socializador, e na verdade, as novas resistências ao que atualmente é denominado de “renascimento da ressocialização”, não se reduzem ao ceticismo, com que ainda se encara a eficácia da intenção socializadora.

Não é por demais lembrar a advertência de Claus Roxin, embora reconhecendo algumas objeções formuladas contra a finalidade preventivo-especial positiva, e a idéia de que a “ressocialização” por si só não pode justificar o Direito Penal, com acerto coloca que no último estágio de realização do Direito Penal, que segundo sua teoria unificadora dialética é a execução da pena, somente justificar-se-ia quando presente o conteúdo de reintegração do delinqüente na comunidade, tratando-se, portanto, de uma execução ressocializadora. Este é o mesmo intuito da Lei de Execução (art. 1.º)

Seguindo a pista deixada por Alessandro Baratta, o caminho para o conceito de reintegração social, requer a abertura de um processo de comunicação e integração entre cárcere e a sociedade, em que os cidadãos recolhidos na cadeia se identifiquem na sociedade externa, e que a sociedade externa se identifique na cadeia, pois os muros da cadeia representam uma violenta barreira que separa a sociedade de uma parte de seus próprios problemas e conflitos.

O problema suscitado porém, não gravita somente sob esta órbita. A disciplina e a maneira de segregação dos condenados do RDD, opõe-se ao princípio constitucional da individualização da pena (art. 5.º, XLVI da CF/88) e, apesar da Constituição Federal admitir o cumprimento da pena em estabelecimentos penais distintos, conforme a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado, não autoriza o recolhimento de condenados em estabelecimentos diferenciados, porque seriam integrantes de “facções criminosas” ou presumidamente perigosos”.

O RDD transita também na contramão do princípio constitucional da igualdade de tratamento (art. 5.º, caput da CF/88), quando impõe regras diferenciadas para o cumprimento da pena e disciplina dos condenados, que se encontram na mesma situação jurídica: “Todos violaram a norma, e foram punidos pelo seu ato”. Não há como se afirmar assim, que regime disciplinar diferenciado está ajustado aos direitos e garantias individuais do condenado previstos na Constituição, adequado à Lei de Execução Penal ou Código Penal. Talvez a única situação benéfica instituída pelo RDD, tenha sido proporcionar ao condenado o cumprimento da pena em cela individual, atendendo o disposto no artigo 88 da Lei de Execução Penal.

Forçosamente, se o Estado exige do cidadão fiel observância à norma, cominando abstratamente uma sanção para aqueles que transgridem determinado comando normativo, objetivando a confirmação de sua vigência, é dever do Estado, observar a legalidade das normas que edita.

Se hoje se permite a criação de RDD, de normas de Direito Penal ou de Execução por Medida Provisória ou Resolução, qual será o próximo passo? Seria a criação, ou melhor, a “reinvenção” da “Violência de Estado”, do “Terrorismo Penal” ou uma nova “ditadura”? Convém assimilar, a afirmação de Alessandro Baratta de que, os aparelhos repressivos geram violência e opressão e perpetuam, ao invés de dissolver, o circulo de violência social e as estruturas de exploração e de opressão.

Neste estado de evolução, em pouco tempo, não haverá como falar em segurança jurídica ou Estado Democrático de Direito. Certamente porque, democrático será o regime que observar a dignidade do homem e não simplesmente aquele que atender a “vontade popular”, pois esta, conquanto soberana, não pode negar a igualdade, pois a negação deste principio é a negação da estrutura básica da democracia.

Como anota Andrei Zenkner Schmidt, num estado democrático de direito, toda lei penal (obviamente também as normas de execução penal) encontra-se vinculada formal e substancialmente, como também todos os poderes estão com as mãos atadas aos direitos fundamentais. O RDD pode até ser um instrumento necessário para reprimir a “crescente criminalidade carcerária”, mas não pode ser instituído por resolução da administração penitenciária, suprimindo princípios, direitos, garantias previstos na Constituição, ou em normas de execução penal ou Direito Penal.

Ao Poder Judiciário por sua vez, cumpre a tarefa de repudiar a violação de qualquer dessas diretrizes, mesmo porque este não está nem deve estar subordinado às determinações do Poder Executivo, principalmente quanto estas determinações sejam contrárias à Constituição Federal ou à Lei, que possam resultar na inversão ou supressão de direitos e garantias, postos à disposição de todos os réus e condenados.

O problema do RDD encontra-se em discussão no Legislativo Federal, podendo ser aprovado o isolamento do condenado pelo prazo de 180 a 360 dias. Adverte-se porém, que mesmo se o projeto respectivo for convertido em lei, não terá esta efeito retroativo (art. 5.º, XLI, CF/88, art. 2.º, par. único, CP, art. 15, 1, PIDCP, art. 9.º, CADH), pois a norma de execução que disciplina a matéria (art. 53) possui natureza material, não eliminando a possível lei a situação de ilegalidade dos condenados que atualmente encontram-se recolhidos no regime diferenciado.

Como analisa Antonio García-Pablos de Molina, a proibição da retroatividade uma das conseqüências do princípio nullum crimen (lex praevia), tratando-se de uma garantia do cidadão vinculada à segurança jurídica de incalculável transcendência política, pois se não se proíbe a aplicação retroativa das leis, aquele poderia ser surpreendido posteriormente como uma norma legal, que aplicada a fatos anteriores a sua entrada em vigor, burlaria o nullum crimen tornando inúteis os direito e liberdades individuais.

Há que se verificar ainda, que o isolamento do condenado pelo prazo de 180 a 360 dias necessitaria de um estudo mais meticuloso, com a finalidade de se verificar os efeitos que podem produzir sobre os aspectos psíquicos ou físicos do condenado, a fim de evitar seqüelas ainda mais irreversíveis em sua personalidade. Ademais, como anotou Heleno Cláudio Fragoso, no começo dos anos 70 tribunais americanos condenaram a segregação do preso por mais de 15 dias, como tratamento cruel e desumano.

Paulo S. Xavier de Souza

é advogado da Fundação Professor Doutor Manoel Pedro Pimentel (Funap-SP), especialista, mestre em Direito Penal, pela Unimep de Piracicaba (SP), professor da FCJAC da Unoeste em Presidente Prudente (SP). Paulosouxa@ig.com.br. O artigo encontra-se disponível no site: http://www. ibccrim.org.br, de 17.2.2003.

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