Jurisdição constitucional e democracia nos 20 anos da Constituição de 1988

Em tempos recentes, o noticiário nacional tem mostrado à população brasileira o surgimento de um novo agente de fomento da transformação social: o Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição de 1988, promoveu uma guinada em suas concepções anteriores e hoje participa de maneira ativa na concretização dos direitos fundamentais.

Essa nova postura tem sido considerada substancialista justamente porque nossa Corte maior tem se preocupado em dotar de conteúdo toda uma série de normas jurídicas presentes em nosso sistema normativo que, por razões de ambigüidade ou vagueza, não possuem um sentido facilmente aferível. Um exemplo se revela em sua Súmula 13, onde se aplicou o princípio da moralidade (expressamente previsto no caput do art. 37 da Constituição de 88) e se vedou, por via interpretativa e sem lei específica, o nepotismo nas diferentes esferas do poder estatal.

Tal ativismo tem sofrido algumas objeções contramajoritárias porque não são poucos aqueles que, vislumbrando o perigo por trás desse obscurecimento da responsabilidade política do Parlamento e da sociedade civil em geral, entendem que, ao agir dessa maneira, o Poder Judiciário viola os mais basilares princípios democráticos, como a prevalência da vontade da maioria e a separação dos poderes.

Contudo, é preciso considerar que no atual momento da discussão constitucional se mostra nítido que a considerável ação substancial dos Tribunais na luta pela efetividade da Constituição (e seus efeitos colaterais não imediatamente desejados) é fruto do intenso movimento de constitucionalização do direito oriundo da segunda metade do século XX (especialmente na Europa) e que toma fôlego no Brasil com a Constituição de 1988 por meio do levante constitucionalista que se consolida a partir da década de 90(1).

Não sem motivo, tal mudança paradigmática se justifica pelas próprias características da Constituição de 88, que além de impulsionar o processo de redemocratização, incorporou um amplo catálogo de direitos fundamentais sociais que, em um país como o Brasil devedor do cumprimento das promessas da Modernidade(2) – merecem plena concretização, gerando o compromisso doutrinário com a idéia de que os ditames constitucionais compõem a força motriz a coordenar toda a prática jurídica com base em três pontos principais:

i) a realização dos direitos fundamentais do homem e dos valores constitucionalmente protegidos;
ii) o direcionamento da prática política e legislativa na efetivação desses direitos e;
iii) a vinculação da administração pública no sentido da implementação dos objetivos constitucionalmente idealizados.

Ademais, é preciso destacar outro fator de peso que tem legitimado a ação judicial substancial: a proeminente inépcia política em resolver demandas de grande relevo social.

Neste ponto não é possível ser ingênuo e não perceber que essa ausência de ação majoritária na direção da efetivação dos direitos constitucionalmente previstos não é decorrência apenas do arcaísmo e proselitismo da política nacional, mas sim o resultado da vivência do político a partir de uma outra racionalidade, uma outra lógica que acaba com o sentido genuíno da própria política.

Essa racionalidade se funda na lógica neoliberal-economicista que se consolida após os movimentos que anunciaram o fim da Guerra Fria e da dicotomia capitalismo socialismo (consolidado com a queda do muro de Berlin) e também o Consenso de Washington.

É notável que a ordem neoliberal impôs, em escala mundial, a estrutura de vida assentada na economia de mercado com, pelo menos, duas conseqüências negativas imediatas: i ) uma globalização perversa, sustentada pela dupla tirania do dinheiro e da informação(3) e ii) o “horror político”(4).

Sobre o “horror político” GENÉREUX observa que, se há alguns anos, ainda era opção pensar no Estado Nacional como ente controlador que, através da regulamentação da economia, pudesse imprimir alguma solidariedade e interesse coletivo na lógica da competição do mercado, hoje a globalização que aí está parece diminuir a margem de ação política estatal.

Por isso, o Estado tem oscilado entre estratégias de atuação pouco atraentes: impotência e imobilismo, combate na retaguarda, adesão deliberada aos dogmas ultraliberais e desprezo pelos objetivos sociais(5).

Para GENÉREUX esse “horror político” pode ser medido em três graus:

i) “a recusa a partilhar”: o modelo de economia de mercado propicia uma ditadura que ocasiona mais exploração, menos parceria e partilha e leva à ausência de estratégias de solidariedade em âmbito nacional e internacional em nome da lógica implacável da competição(6);
ii) “a tirania do mercado político”: as escolhas coletivas são motivadas pela aplicação da “lei da oferta e procura no mercado de votos”. Os políticos acabam agindo como empresários que disputam o mercado, buscando atender interesses eleitorais imediatos e assim deixam de investir a médio e longo prazo, o que promove o esvaziamento da essência da política que se torna refém de estratégias de marketing(7);
iii) “uma democracia muda e uivante”: caracterizada pela ausência de grandes debates públicos e de fissuras ideológicas, o que leva à rejeição da atividade política. Os cidadãos ficam desamparados nas mãos de discursos fáceis, que podem assumir faces nitidamente populistas(8).

Por isso, a falência da política faz com que os juristas sejam imbuídos da responsabilidade de tratar dos limites da jurisdição constitucional e das possibilidades de atuação do Poder Judiciário no Estado Democrático de Direito, afinal, sobram situações concretas que exigem uma resposta do direito(9).

Na maioria das vezes, esses casos possuem natureza dilemática: por um lado, não se olvida o imperativo ético de não fugir às demandas de satisfação das necessidades mínimas de existência para a pessoa humana e de realização material da Constituição (que deveriam ser resolvidas politicamente). Contudo, de outro, subsiste o compromisso com a proteção da democracia, através da preservação de uma esfera própria de atuação judicial que não se confunda com agir político e seus respectivos poderes.

Nesse contexto, parece natural que a população deposite sua confiança em um novo herói, o Poder Judiciário como protagonista da ação política legitimando, por vias transversas, sua transformação em novo soberano.

No entanto, isso não deve se tornar regra, pois mais do que nunca se faz necessário o fortalecimento dos demais poderes, especialmente o Legislativo, de modo que paulatinamente a Constituição de 1988 deixe de ser mera esperança presente no texto escrito para se tornar realidade vivida pela maioria da população. Daí a importância de fomento a esses debates, tarefa desenvolvida com intensidade e paixão acadêmica nas aulas do Mestrado em Direitos Fundamentais e Democracia da Unibrasil.

Notas:

(1) BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil). In. SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel (Coords.). A constitucionalização do direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro: Lumen juris, 2007. p. 203-249.
(2) STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: Uma exploração hermenêutica da construção do direito. 5.ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 23-24.
(3) SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2000. p. 38.
(4) GENÉREUX, JACQUES. O horror político. O horror não é econômico. Trad. Eloá Jacobina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.
(5) GENÉREUX, JACQUES. O horror político…, p. 12.
(6) Ibidem, p. 49-74.
(7) Ibidem, p. 75-99.
(8) Ibidem, p. 111.
(9) São inúmeras as questões que hoje demandam resposta do Judiciário, p. ex.: Quais os limites para o controle de constitucionalidade material de uma lei ordinária em face dos princípios do direito? Pode o Judiciário intervir na execução orçamentária e determinar que se construa uma creche ao invés de um chafariz? Como buscar legitimidade das decisões em face da Constituição em um ambiente de pluralismo axiológico? Fere o princípio da isonomia deferir, com base no art. 196 da C.F./88, um tratamento para um paciente que demande alto custo enquanto muitos não tem acesso nem a consultas médicas? Qual o limite da derivação de regras com base em princípios sem ferir a separação dos poderes?

Marco Aurélio Marrafon é mestre e doutor em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná UFPR, com estudos doutorais na Universidade de Roma Tre Itália. Coordenador geral do Curso de Direito da Unibrasil. Professor de Jurisdição Constitucional e Processo no Mestrado em Direitos Fundamentais e Democracia da Unibrasil. Vice-presidente eleito da Academia Brasileira de Direito Constitucional ABDConst.