Juízes não devem investigar crimes

No tempo da inquisição (Idade Média) a pessoa investida de poderes investigatórios recebia a notícia do crime, investigava, acusava, exercia um simulacro de defesa, torturava, condenava e executava a pena. Esse modelo de processo (que ficou conhecido como inquisitivo), com a evolução da sociedade moderna, desapareceu. Hoje vigora nas nações mais avançadas o denominado processo acusatório, que distingue com clareza as funções de acusar, defender e julgar. De acordo com a Constituição brasileira, em regra, quem acusa é o Ministério Público, quem investiga é a Polícia Judiciária, quem defende é o Advogado e, sem exceção, quem julga (com caráter de definitividade) é o Juiz.

Que o Ministério Público acompanhe as investigações preliminares, atuando junto ou ao lado da Polícia, nada há de anormal (é, aliás, até recomendável). Essa é uma tendência mundial, principalmente nos países europeus, onde se nota a decadência quase absoluta dos juizados de instrução, que colocam o juiz à frente das investigações. Espanha e França insistem ainda nesse sistema. No mais, vem ganhando proeminência o Ministério Público (que sempre atua ao lado da Polícia).

A união dessas instituições (MP + Polícia + órgãos do executivo) nas ?forças-tarefas de repressão ao crime? é muito bem vinda. Mas nelas não existe espaço algum para a participação ativa (e muito menos proativa) dos juízes. O juiz tem sempre que zelar pela sua imparcialidade. É um terceiro, dotado de garantias supremas, que deve cuidar da preservação de todos os direitos fundamentais (do indivíduo e da sociedade), procurando compatibilizá-los na medida do possível. A sociedade tem direito à segurança, mas esse direito não é maior nem mais nem menos importante que os direitos fundamentais do suspeito ou do acusado. Quem, com independência e imparcialidade, está programado constitucionalmente para conciliar todos esses interesses opostos? O juiz.

Justamente por isso é que ele não deve se envolver com o momento investigativo de nenhum delito. Alguns resquícios desse modelo de juiz investigador ainda existem na nossa legislação: crime falimentar (é o juízo universal da falência que se incumbe da investigação do crime), inquérito contra juízes e inquéritos contra quem conta com prerrogativa de funções (quem preside a investigação contra um deputado federal, por exemplo, é um Ministro do STF).

A lei do crime organizado (Lei 9.034/90), no seu artigo 3.º, também previa a possibilidade de o juiz conduzir essa investigação. O STF, em 12.02.04 (na ADI 1.570), julgou inconstitucional (em parte) esse artigo, ressaltando que ?a neutralidade do juiz é essencial, pois sem ela nenhum cidadão procuraria o Poder Judiciário para fazer valer seu direito (…) Ninguém pode negar que o magistrado, pelo simples fato de ser humano, após realizar pessoalmente as diligências, fique envolvido psicologicamente com a causa, contaminando sua imparcialidade?. A outra parte não afetada pela decisão do STF já tinha sido revogada pela LC 105/01 (que cuida da quebra do sigilo bancário).

Pelo exposto se conclui que os juízes brasileiros, por força do modelo constitucional vigente, ressalvando-se os últimos resquícios inquisitórios, não podem (e não devem) se imiscuir nas investigações. Nem tampouco na configuração do modelo político-criminal que julgam mais apropriado para o ?combate? (controle) de determinados crimes. Quando ocupam essa tarefa, claro que prontamente devem se afastar do julgamento deles, precisamente para a preservação da sua neutralidade e imparcialidade. E quando isso não ocorre ex officio? As partes podem argüir no processo a sua suspeição. Para isso é que serve a chamada exceção de suspeição (que se aplica analogicamente para os casos em que o juiz se acha envolvido psicologicamente com sua apuração ou com o resultado dessa).

Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito penal pela USP, secretário-geral do IPAN (Instituto Panamericano de Política Criminal), consultor e parecerista e diretor-presidente da Rede de Ensino PRO OMNIS (1.ª Rede de Ensino Telepresencial da América Latina – www.proomnis.com.br)

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