Investir na fome

As atenções do mundo têm sido chamadas com mais insistência para as ações internacionais contra o terrorismo irracional, mas a verdadeira praga desse início de século é a mesma de boa parte do final do século passado: a fome. Milhões – fala-se em 840 milhões! – morrem à míngua no planeta neste exato momento. No entanto, essa hecatombe sem precedentes é enxergada com naturalidade por ricos e remediados, muitos deles que fazem da pobreza o seu melhor negócio.

Um encontro mundial foi organizado em Roma, na sede da agência da ONU para a Agricultura e Alimentação – FAO, para debater formas e estratégias efetivas de combate à fome. A meta, embora ousada, é vergonhosa: reduzir os 840 milhões de famintos para 400 milhões até o ano 2015. Lá deveriam estar representantes de todos os governos constituídos e responsáveis, de pequenos e grandes países. Mas, tirando Espanha e Itália, só foram os pequenos. Os demais nem mandaram recado.

A ausência dos países ricos no encontro foi, como precisava ser, duramente criticada. A fome crônica não constitui espetáculo que possa ser transmitido pela TV para deleite de platéias bem nutridas ou agrado de líderes alienados. A indústria da guerra – ou as comemorações de um reinado ou, mesmo, uma olimpíada ou copa mundial de futebol – tem maior apelo. Falta, como mandou dizer o papa doente, uma “cultura da solidariedade” que permita uma ação efetiva para derrotar a fome no mundo. E essa ausência de cultura é maior quanto mais rica a nação. Os Estados Unidos, por exemplo, figura entre as nações que, proporcionalmente, menos se preocupam com essas questões.

Em um mundo de abundância, a fome é um atestado de incompetência para toda a humanidade. A luta, que começou em 1996, até aqui contabilizou – segundo os dados da ONU – a retirada de apenas 25 milhões de pessoas da enorme lista de famintos. Para atingir as metas propostas, seriam necessários, segundo o mesmo organismo, recursos adicionais de 25 bilhões de dólares por ano em ajuda agrícola. A ajuda atual dos países ricos não chega a 70 bilhões de dólares.

Além de pequena diante da imensidão do problema, essa ajuda é neutralizada pelas políticas de subvenções agrícolas praticadas pela maioria dos países desenvolvidos. É uma prática que, além de contrariar as regras do livre mercado, sufoca ainda mais os países em desenvolvimento. O fato se reveste de significado especial, já que cerca de setenta por cento dos habitantes mais pobres do planeta estão situados exatamente em áreas rurais. O Brasil, através de seu ministro da Agricultura, tem sistematicamente criticado essa forma de agir dos Estados Unidos e de países europeus, preocupados até aqui apenas com seu próprio umbigo. No pronunciamento que realizou na abertura do encontro, o primeiro-ministro italiano, Silvio Berlusconi, decretou que é preciso fazer a fome desaparecer do planeta. Entre o discurso e a prática, entretanto, há um abismo.

A esperança é que a parte rica do mundo, incapaz de sensibilizar-se pela miséria de milhões de semelhantes, se deixe levar pelo único argumento que entendem: a fome como um cínico negócio. Com efeito, a FAO sustenta que no combate à fome, além da questão moral, existe a econômica. Reduzindo a fome mundial pela metade, a economia seria de 120 bilhões de dólares por ano. Quase o dobro do valor de toda a ajuda atual. Sem dúvida, um bom investimento.

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