Guerra contra o Iraque (última parte – X) – Em defesa do Direito Internacional

“As violações do Direito Internacional nãosão mais comuns do que as de qualquer outro ordenamento jurídico. Todavia, generalizou-sea crença de que ele é constantemente infringido.”

(AKEHURST, Michael. Introdução ao Direito Internacional. Tradução de Fernando Ruivo. Coimbra: Almedina, 1985. p.2)

Como ocorre repetidamente em situações de conflito armado, o ataque ao Iraque ao mesmo tempo em que despertou interesse pelas questões internacionais, gerou inúmeros debates e questionamentos, nem sempre fundamentados, a respeito do Direito Internacional.

De fato, o desprezo do governo americano em relação aos princípios e regras mais elementares que norteiam as relações internacionais foi constante desde o início do conflito até o atual período pós-guerra. A Carta da ONU, considerada como um dos tratados mais importantes que regulam atualmente a vida internacional, foi descumprida em diversos dispositivos, como os que prevêem a igualdade entre os Estados e a proibição da intervenção em assuntos internos dos países, salvo intervenção da própria ONU quando o Conselho de Segurança, mediante resolução internacional, aprova-a porque considera que há ameaça da paz, ruptura da paz ou ato de agressão. Além disso, estabelece a proibição do uso da força pelos Estados, com exceção da legítima defesa, quando o Estado sofre um ataque armado prévio. Nenhum desses dispositivos foi respeitado.

Mas não foram essas as únicas violações: a racionalidade, os valores humanos, a ética e os bons costumes também foram completamente esquecidos. Com base numa doutrina que reflete sua ideologia político-partidária, o Presidente Bush demonstrou a ambição norte-americana de onipresença mundial, unilateralismo e hegemonia global, colocando em prática as idéias de ataques preventivos legítimos, de ocupação militar em todas as regiões do mundo e distinção entre Estados amigos e Estados delinqüentes (rougue states). Autoproclamou sua ofensiva de “processo civilizatório”, visando à libertação e democracia, mas desconsiderou os valores mais elementares da civilização agredida: seus interesses, sua tradição e sua cultura. Justificou a ação através de um argumento que se comprovou inconsistente e com base em documentos de duvidosa veracidade, escondendo seus reais interesses no conflito.

A incoerência foi flagrante em todo o processo de ataque ao Iraque. Mas o Direito Internacional não pode pagar por tais acontecimentos. Ele foi e continua sendo um importante elemento de organização da sociedade internacional porque tem papel fundamental na diminuição da anarquia e na busca da satisfação dos interesses comuns. Exatamente por isso ele é, na grande maioria das situações, respeitado. Os Estados têm interesse na manutenção da ordem, sendo que o descumprimento do Direito Internacional acontece em menor freqüência, embora em situações que tenham grande repercussão. A gravidade da guerra no Iraque realmente chamou a atenção do mundo mas, enquanto ela ocorria, várias controvérsias internacionais foram resolvidas por outras vias, envolvendo a diplomacia, organizações internacionais, mediadores, árbitros, cortes internacionais, dentro da mais ampla legitimidade e legalidade.

Desconsiderar ou negar o Direito Internacional porque ele foi violado, porque não foi eficaz na aplicação da sanção ou porque reflete o desequilíbrio de forças políticas ou econômicas da sociedade seria o mesmo que questionar o direito penal porque muitas pessoas cometem crimes – e muitas não são punidas – o direito civil porque o custo judicial para reaver o prejuízo pode ser altíssimo ou, ainda, o direito administrativo, porque as autoridades cometem inúmeras ilegalidades ou injustiças.

O Direito Internacional, portanto, deve continuar existindo enquanto disciplina jurídica autônoma e buscando sempre a realização dos seus objetivos. Toda a comunidade internacional, incluído os países desenvolvidos e em desenvolvimento, precisam disso. Nesse sentido, MELLO afirma que a negação do Direito Internacional “significaria colocar a sociedade em estado de anarquia, que talvez viesse a favorecer aos poderosos. O Direito emana dos poderosos, mas uma vez “promulgado” limita o seu poder e passa ser também uma arma de defesa para os fracos.” (MELLO, Celso D. A. Curso de Direito Internacional Público. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. 12.ª. ed. p.107.)

Mas nem por isso o Direito Internacional pode se considerar absoluto e impassível de críticas ou mudanças. A segunda guerra do Iraque mostra que algumas alterações são necessárias. Caso contrário, corre-se o risco das práticas norte-americanas tornarem-se fato normal e corriqueiro e legitimarem-se, abrindo precedentes ou até mesmo perderem a condição de doutrina interna e transformarem-se em regras internacionais.

O Direito Internacional tem que contribuir para o retorno ao multilateralismo, buscando a democratização do processo de tomada de decisão das Organizações Internacionais, a manutenção constante da ordem e o respeito efetivo aos anseios de todos os Estados e povos. Deve também ajudar no combate às novas ameaças como terrorismo e narcotráfico, que desconhecem fronteiras geográficas e por isso exigem que sua prevenção e a repressão sejam coletivas, via cooperação internacional.

A Guerra, realizada de modo isolado, foi muito rápida. No entanto, a Paz, para ser perpétua, precisa ser construída em conjunto com todas as nações. E o Direito Internacional tem que ser obreiro desta árdua, mas necessária, construção.

Tatyana Scheila Friedrich

é advogada, mestre pela UFPR, membro do Nupesul (Núcleo de Pesquisa em Direito Público do Mercosul/UFPR) e Professora de Direito Internacional Público no curso de Direito das Faculdades Curitiba e nos cursos de graduação e pós-graduação em Relações Internacionais da Universidade Tuiuti do Paraná – UTP.

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