Galinha dos ovos de ouro

Pois eu lhes digo que estão matando as galinhas dos ovos de ouro!

Nos primórdios, era o próprio soberano quem dizia o direito, ele próprio julgava pessoalmente os conflitos entre cidadãos. Depois, por necessidades operacionais e por fatores diversos, teve que delegar tal mister a seus prepostos. E desde então foi preciso conviver com as conseqüências dessa delegação.

No reino de Avilã, o número de juízes é irrisório em relação à quantidade de habitantes. Disso decorre a avalanche de processos para cada magistrado, a insuportável pressão psicológica sob que vivem, dada a impossibilidade de administrar a própria impotência frente à pletora de autos sobre a mesa. E a conseqüente morosidade na solução dos litígios. Daí, a insatisfação e a grita dos “súditos”, de um lado; e do outro, o crescente esmorecimento e debandada de juízes com a deserção dos quadros da Magistratura, principalmente pela aposentadoria precoce.

Sou testemunha ocular desse drama, eu, que por alguns meses ajudei a carregar o andor insustentável da jurisdição em segundo grau. Vi, com tristeza, que valorosos juízes, íntegros, adequados e operosos, estão capitulando ante a constatação da impossibilidade humana de julgar um número exagerado de processos; ante as decepções da carreira; ante o abandono e inércia da Administração. Alguns estão afastando-se por doenças “profissionais”, como stress e outros males psicossomáticos; outros, por se sentirem como que “empurrados” para a aposentadoria e para a demissão. Não é um contra-senso? Mas, não estamos precisando tanto de juízes?!

Eu disse “empurrados” para a aposentadoria, impelidos pelo sistema! É preciso lembrar que, no princípio, era o próprio soberano quem julgava. Hoje, ele não julga mais, apenas administra. E nem sempre está preparado para as funções de administrador. E, o que é pior, o sistema não costuma dar-lhe condições para administrar. Ora, não se paralisa a Justiça por causa de vencimentos? Por que não paralisá-la, com maior razão, por falta de juízes e por falta de infra-estrutura?

Pois bem. A “longa manus” do soberano não alcança, desafortunadamente, todos os rincões do reino, a fim de perscrutar os anseios e necessidades pessoais dos juízes. E os prepostos nem sempre têm sensibilidade e bom senso e, o que é pior, boa vontade para lidar com os problemas “humanos” da classe. Sim, pois juiz também é gente!

Aí é que eu queria chegar! É possível que o soberano, às vezes, não tome conhecimento, por vários motivos, do que está ocorrendo a sua volta. Seus “auxiliares” são profissionais da mais alta competência e de “sua” absoluta confiança… Mas, nem sempre são do agrado e da confiança dos colegas. E assim é porque pode faltar àqueles sensibilidade bastante para resolver questões singulares de cada indivíduo, para perceber a fatalidade das diferenças individuais. E então, em nome de um tratamento cegamente igualitário, de uma falsa eqüidade, cometem-se as mais revoltantes injustiças, na Administração.

Em meio a esse caos, é desolador ver magistrados vergando sob o peso de pilhas de processos, clamando por uma ajuda que não vem. Ouvi de um juiz, desencantado com as desilusões da carreira, que vai voltar para o interior. Outro, julgador ágil e conciso, despojado de virtuosismo mas dotado de extraordinário bom senso, que dedicou uma vida inteira à Magistratura, foi sempre lembrado na hora de “derrubar” (sentenciando) montanhas de processos, primeiro de algumas Varas, depois de algumas Câmaras dos Tribunais. É reconhecido pelos colegas como um “limpa trilhos”, verdadeiro “estivador do direito”. Hoje, desencantado e triste, com a saúde abalada, à beira da “expulsória”, continua à espera de uma promoção que não chega nunca para ele… E – é preciso que se diga – estou falando de magistrados vocacionados e trabalhadores, que se encontram nessa situação. O soberano nem sempre fica sabendo que problemas não foram resolvidos, ou foram “mal” resolvidos – o que dá na mesma. Talvez não saiba também que, se o “auxiliar” trata mal um companheiro de toga, quem o está maltratando é o próprio soberano.

É por isso que tanta gente moça e brilhante está abandonando as fileiras da Magistratura. Numerosos juízes, equilibrados, esbanjando vigor e capacidade de trabalho, que poderiam continuar colaborando na prestação jurisdicional, estão antecipando sua aposentadoria. Por que prosseguir, se não recebem incentivo e apoio? Prosseguir por que, se não vêem perspectivas, e sobretudo se os estão “empurrando” para fora da Instituição? Isso, aliás, revela certa falta de clarividência da Corte, pois todo aposentado representa duplo gasto com pessoal, haja vista que a Instituição terá que repor outro magistrado para substituí-lo. É mister que se perceba com urgência que juiz estressado, aposentado ou morto não resolve…

É uma lástima! Mas estão matando, sim senhor, as galinhas dos ovos de ouro!

Albino de Brito Freire

é juiz de Direito aposentado e professor.

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