Função social das adoções & a responsabilidade social dos Juristas

Ana Cecília Parodi

Liberdade de iniciativa é uma garantia constitucional que possui muitas camadas, é um direito que não se restringe, exclusivamente, à possibilidade de abrir uma empresa, ou seja, de constituir uma pessoa jurídica.

A liberdade de iniciativa se espraia por toda a atividade profissional desenvolvida pelos cidadãos, podendo, em uma interpretação mais extensiva, ser vislumbrada como gênero da própria liberdade de associação ou das garantias básicas para “se fazer o bem”; pois, afinal, as previsões legais para abertura de ONGs, Oscips e Fundações também se constituem em normas reguladoras de uma pessoa jurídica, cujo objeto social será diverso da obtenção hodierna de lucros.

Mas, o que se pretende destacar, é que não importa a forma ou espécie da iniciativa tomada todas as suas variantes estão condicionadas à promoção do bem comum e da dignidade da pessoa humana, como valores fundantes e inegociáveis, sendo este o discurso jurídico mínimo, para a Responsabilidade Social, que subsiste para além da modalidade Empresarial (RSE).

No mês de maio, o Brasil se chocou com a notícia () de um casal de Uberlândia(1) que simplesmente desistiu da adoção de uma garotinha de meros 8 anos, após 6 meses de guarda provisória, e isto sem informar qualquer motivo ou justificativa. Assim. Sem mais, nem menos, como quem exerce o direito de desistir de uma compra efetuada pela internet.

O promotor de Justiça, Dr. Epaminondas Costa, de imediato ingressou com ação indenizatória, requerendo um pensionamento até os 24 anos da menina e o valor de 100 salários mínimos, que serão destinados a tratamento psicológico.

Andou muito bem o ilustre promotor. Respeito não se conquista apenas pela obrigatoriedade do uso de um pronome de tratamento. Ao prestar concurso público, Dr. Epaminondas optou por exercer sua liberdade de iniciativa em profissão estável, não sujeita aos reveses da concorrência de mercado.

Mas, longe do comodismo, definitivamente, agiu com respeito por sua função, denotando responsabilidade social e, indo além, demonstrando consciência da função social do cargo que ocupa, pautando-se pelos valores e objetivos republicanos. Congratulamo-nos por sua conduta.

Por outro lado, preocupam as opiniões lançadas na mídia, em que juristas de peso teriam se manifestado avessos à conduta do i. Promotor, sob alegação de que os pais exerciam o direito legítimo de não concluir a adoção e, por estarem ainda no inter regno provisório, não tinham qualquer obrigação para com a menina.

Pois bem. De fato, o Pacto Social é fundamentado no “direito de amar” e no “direito de romper” (PARODI, 2007), sendo este segundo mais amplo do que o primeiro, visto que sofre quase nenhuma restrição legal, sendo permitido aos cidadãos desvincularem-se de qualquer relacionamento, ainda que movidos por motivo indigno. O Direito não perscruta de tais razões.

Contudo, caros leitores, figura em nosso ordenamento a teoria do abuso de direito, sendo esta o delineamento do discurso jurídico privatístico da responsabilidade “jurídica” social (uma RJS); desta forma, mesmo o exercício dos direitos legítimos hão de ser praticados sem ferimento de sua função social, econômica, da boa-fé, dos bons costumes.

Estariam esses “proponentes adotantes” para usar um termo de natureza comercial em seu direito de romper a proposta de adoção? Sem dúvida alguma! Estariam eles livres de “qualquer obrigação” para com a garota?

Jamais, em tempo algum. Persiste o direito de romper, mas nunca sem a devida responsabilização pelos abusos cometidos em sua operação. Está-se diante de um dano típico das relações afetivas: o dano de amor (PARODI, 2007), figura que designa lesões materiais e morais, em sede de relacionamentos, mas, via de regra, que permanecem indenes e desprezadas pela jurisprudência, como se o vínculo afetivo pudesse desculpar as violências e abusos cometidos em sua operação, a contrario sensu do que preceitua o § 8.º, artigo 226, da Constituição Federal.

O Direito passou, e vem passando, por vigorosas transformações, que impõem a sua leitura e aplicação, de acordo com os direitos humanos, fator que influencia diretamente o exercício da liberdade de iniciativa dos seus operadores.

Existe uma função social para as adoções, que precisa ser observada, notadamente, quando se põe em risco a estabilidade emocional e o desenvolvimento de um menor. Compete a cada cidadão o direito-dever ao desenvolvimento, em sentido abrangente.

Responsabilidade social é dever de todos, não apenas do Estado ou das Empresas. Aos céticos, resta perguntar: desejamos, nós, habitar em um mundo onde que se julga correto, comum, normal, não abusivo, um casal oferecer esperanças, para depois dispor da prerrogativa de simplesmente dar as costas, “devolver” ou “não querer mais”, uma criança que possui idade suficiente para compreender sua orfandade? É certo que essa menina viu-se livre, talvez, de mal maior. Mas que essa não seja uma desculpa para a irresponsabilização do dano moral.

Nota:

(1) Disponível em: http://www.bomdia.adv.br/noticias.php?id-noticia=15790. Acesso em: 29/5/09. Coluna sob responsabilidade dos membros do grupo de pesquisa do Mestrado em Direito do UniCuritiba: Liberdade de Iniciativa, Dignidade da Pessoa Humana e Proteção ao Meio Ambiente Empresarial: inclusão, sustentabilidade, função social e efetividade, liderado pelo advogado e professor doutor Carlyle Popp e secretariado pela advogada e professora M.Sc. Ana Cecília Parodi. grupodepesquisa.mestrado@ymail.com.

* Esta coluna está alinhada e possui compromisso com os Objetivos para o Desenvolvimento do Milênio.

Ana Cecília Parodi é autora e mestre em Direito Econômico e Socioambiental, pela PUCPR. Advogada com atuação especializada em Direito Civil e Empresarial. Possui obras publicadas, com destaque para Responsabilidade Civil nos Relacionamentos Afetivos Pós-Modernos, Russel Editores, 2007. adv.anacecilia@yahoo.com.br

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