Famílias reconstituídas: breve introdução ao seu estudo (Final)

3 As famílias reconstituídas na evolução das pesquisas

É inegável que a convivência de um homem e uma mulher sob um mesmo teto, em matrimônio ou união estável, com filho ou filhos provenientes de relações anteriores, não forma uma família no senso clássico do termo porque um deles não é o pai biológico de ao menos uma das crianças. O número de famílias reconstituídas eleva-se constantemente e isto tem sua origem no aumento da taxa de divorcialidade, que traz como conseqüência a incremento de novas núpcias, suscitando interrogações e necessidade de melhor conhece-las.

Os estudos iniciais para atender estas demandas desenvolveram-se fundamentalmente no campo da psicologia e da psiquiatria, da sociologia, da história, da antropologia e da demografia na década de 50/60, nos países de língua inglesa, e ainda são muito limitados no campo do direito. Inicialmente, os investigadores sociais limitaram-se a avaliar comparativamente as famílias originadas em um primeiro casamento e as provenientes de casamentos posteriores, quanto sua estabilidade, sucesso, adaptação, educação e socialização dos filhos e bem estar familiar. Na década de 70, mudam os rumos da investigação e se busca descrever e analisar estas novas famílias em sua especificidade estrutural e como vivem seus integrantes, sem varolá-las nem discrimina-las em relação ao modelo tido como ideal, a família nuclear de primeiras núpcias. Reconhece-se tratar de nova forma de grupamento social, que deve ser estudada em seu contexto e problemática próprios. Conclui-se que a complexidade destas famílias está mais na ausência de normas e regras às quais se referir na vida cotidiana o que provoca um estado de isolamento social e jurídico. Na década de 80, as famílias reconstituídas são pensadas como integrantes de um sistema familiar mais amplo. Nesta perspectiva, as categorias pai-pai afim, mãe-mãe afim, filho-filho afim não são posições excludentes nem oponentes às figuras nucleares tradicionais, mas complementares a elas, que haverão de colaborar no crescimento de todo o grupo envolvido.

O campo de investigação é ampliado, tornando imprecisos os limites da família. Nela se identifica o lugar do genitor que tem a guarda e o do genitor que não a tem, incluindo a parentalidade ampliada de cada um deles. É a partir dos filhos e seus espaços de circulação entre os vários subsistemas que se formam que se define a família reconstituída.

Durante estas etapas, o direito permaneceu distante desta nova dinâmica social, como se sua estrutura não resultara afetada pelas mudanças operadas. Brindou-a apenas com restrições de ordem patrimonial e permaneceu vazio quanto a regras que contribuam à legitimação das funções que cumprem seus integrantes e favoreçam o bom desenvolvimento e a estabilidade familiar.

Entretanto, estas famílias não foram e não são estranhas à sociedade. Basta alguns dados estatísticos para percebermos que, cada vez menos, uma criança permanece até à idade adulta junto a ambos os pais biológicos e, em contrapartida, cada vez mais esta criança será criada por um só dos pais e um novo cônjuge ou companheiro destes. Nos Estados Unidos, por exemplo, cerca de 60% de todos os primeiros casamentos termina em divórcio e cerca de 75% de todos os divorciados casam-se novamente. Destes, 65% têm filhos do primeiro casamento e, assim, 2 de cada 5 menores de 18 anos se convertem em filhos afins. Conjecturas demográficas estimavam que na virada do século o número de crianças que se criam em famílias reconstituídas é superior aos que se criariam em famílias de primeiras núpcias.(14) No Brasil, o censo não se organizou para obter tais informações, mas é certo que há uma tendência reducionista de casamentos(15) e, em sentido inverso, de um aumento do número de separações e divórcios, formando um elevado contingente de famílias monoparentais, que podem vir a se reconstituir. Descabe, assim, ignorar a presença e a magnitude destas famílias.

Enquanto objeto de interesse às ciências psico-sociais em indagar a respeito dos problemas e conflitos específicos destas configurações familiares, permanecem invisíveis no campo do direito.

4 A função do direito

Se não é em ódio às segundas núpcias(16) é, ao menos, com desconfiança que o direito tradicionalmente delas se ocupa. Exemplo disto é a obrigação de viúvos e divorciados inventariarem os bens de seus falecidos cônjuges, sob pena de só poderem celebrar novas núpcias pelo regime da separação obrigatória de bens, penalização igualmente imposta à mulher que não observa o período forçado de ?viuvez? de até 10 meses findo o casamento anterior. Isto permite afirmar que as famílias reconstituídas enfrentam uma hostilidade histórica na ordem jurídica.

Da experiência cotidiana colhem-se inquietações a partir da existência ou não de um vínculo de parentesco entre o novo cônjuge ou companheiro e os filhos próprios. Até mesmo se seriam verdadeiramente pais afins os que se casam ou se unem a um viúvo ou uma viúva com filhos de uma relação familiar anterior. Decorre disto, que não seriam pais afins se os pais biológicos ainda vivessem. E não seriam igualmente quanto aos filhos não conviventes, ou seja, daqueles sob a guarda do ex-cônjuge do novo marido ou da nova mulher.

Nesta ordem de idéias surgem mitos e crenças segundo os papéis que ocupam os sujeitos nas famílias reconstituídas. Competiria à mulher unida a um homem que não vive com seus filhos o exercício de quaisquer dos atributos do poder familiar em relação a estes filhos? Pode dirigir-lhe a criação e a educação, bem assim exigir-lhes respeito e obediência e a prestação de serviços domésticos próprios de sua idade e condição? Pode esta mulher assistir ou representar os filhos de seu novo marido ou companheiro, nomear-lhes tutor ou reclama-los de quem ilegalmente os detenha? Mesmo existindo laços mais estreitos, estima esta mulher que o papel que exerce e o lugar específico que ocupa no novo lar carece de alguma normativa, que legitime suas ações, não apenas como efeito de compromissos de caráter moral, da integração da família ou da convivência.

A questão alimentar suscita outras inquietações. Para algumas mulheres é natural e implícito à nova relação que seus cônjuges sustentem a seus filhos de uma união precedente, decorrendo tal responsabilidade da mera decisão de reconstituir uma família. Outras, entretanto, não desejam que seus novos maridos ou companheiros cumpram com este dever. No senso comum, o dever de alimentar os filhos afins não deve subsistir à dissolução da nova família, mas deve persistir a obrigação destes para com os pais afins quando necessitarem.

Colocamos a questão: o novo casamento ou a nova união do genitor impõe a seu novo cônjuge ou companheiro obrigações de sustento e manutenção de seus filhos? A princípio, a resposta é negativa.(17) O pai ou a mãe afim não estão obrigados a custear as despesas de filhos que não são seus e que vivem em seu lar. Porém a comunidade de vida complica singularmente as relações alimentares de maneira que o pai ou mãe afim jamais será poupado.

No exercício da autoridade parental também dissentem as opiniões. De uma parte, os pais afins podem opinar em todas as questões relativas aos filhos afins, mas a decisão deve ser compartilhada. De outra parte, é aceitável a opinião, mas a decisão não pode usurpar a parentalidade do genitor biológico.

O direito de visitas e o direito sucessório também entram na pauta das interrogações. Apesar da dissolução do vínculo conjugal por morte ou divórcio, julga-se razoável que o pai e a mãe afim continuem a visitar e a comunicar-se com seus filhos afins, menos prejudicial a estes ante o luto vivenciado pela terminação do casal conjugal, bem assim de seus meio-irmãos. Considera-se justo e importante que a mãe afim continue na criação dos filhos de seu ex-cônjuge ou companheiro, se resultar beneficioso para eles. O dissenso sobre estas questões, por oposição da família biológica, resultará em demanda judicial, que o juiz, com a máxima discricionaridade e no interesse superior dos menores, decidirá. Quanto ao direito de reciprocamente herdarem pais e filhos afins também avultam idéias conflitantes, quando não o ignoram.(18)

Destas vivências, aqui traduzidas em sinopse, resulta uma diversidade de aspirações sobre uma reforma legal. Uns estimam que a inexistência de normatividade a respeito gera polêmicas e dificuldades para o bom desenvolvimento das famílias reconstituídas, cuja superação encontraria respostas em uma disciplinação peculiar tal como o sistema atual brinda as uniões estáveis. Outros, a contrário, entendem desnecessário um estatuto legal próprio. Outros mais, os direitos dos integrantes destas famílias não devem ser concedidos senão mediante demanda própria da parte interessada, desestimando um direito imposto. Se para uns existe uma demanda social pelo estabelecimento de alguma normatividade que ordene os direitos e os deveres entre pais afins e filhos afins, para outros esta não deveria ser diferente da normativa geral aplicada ao casamento, à união estável e às relações paterno-filiais em si, pois que redundaria para o direito reconhecer uma família de primeira e outra de segunda classe.

Entretanto, toda família requer pautas de conduta que definam e compatibilizem as regras entre seus integrantes, sem as quais não se pode conceber seu pleno funcionamento. Porém, as famílias reconstituídas vivem seu cotidiano essencialmente no espaço privado e à margem da proteção da lei. Inexistindo normas externas, que afirmem as responsabilidades originadas das funções familiares, são seus próprios integrantes que as criam, intercambiando concordâncias de todos, que podem deixar desguarnecidos alguns direitos de algum de seus membros, principalmente das crianças e dos adolescente, que não podem defender por si sós seus legítimos interesses. Neste sentido, a lei não pode permanecer alheia, outorgando um maior reconhecimento do pai e da mãe afim mediante a afirmação clara de direitos e deveres que atuem como orientação de condutas, com o objetivo de minimizar os conflitos e facilitar a estabilidade do novo grupo familiar. A lei e a justiça não podem indigenciar as famílias reconstituídas, crescente realidade sociológica e de complexas relações de cotidianidade, fonte de responsabilidades em relação à socialização, sustento emocional e assistência material dos filhos que nelas circulam.

5 Reflexões finais

Temos a convicção de que este estudo não esgota a temática das famílias reconstituídas, mas pode contribuir a dar alguns lineamentos a outras investigações, no contexto de uma reorganização das relações pessoais e sociais. Esta nova forma de família tem sido pouco investigada, tornando-se invisível ao Direito, que não desenvolveu normas adequadas que sancionem como pode funcionar e nem oferece modelos institucionais que a guie. De suas características identificamos uma multiplicidade de dinâmicas interpessoais, que não podem ser aprisionadas em uma regulação de caráter geral. O momento é muito mais propício ao reconhecimento de uma realidade social, que a lei e o judiciário resistem enxergar, do que de respostas prontas e acabadas às angústias, incertezas e ambigüidades que gravitam nestas famílias.

Nesta perspectiva, avaliamos que as articulações entre o ordenamento legal e as práticas sociais não cobrem as demandas, as aspirações e as necessidades de seus integrantes, estimando pelo estabelecimento de certos e específicos direitos e deveres à consolidação dos princípios de solidariedade, cooperação e responsabilidades no seio destas famílias.

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Notas

 (14) Estes dados foram recolhidos junto a Stepfamily Association of América, Inc. Disponível em: http:// www.flyingsolo.com/view-article.asp?pid-1&fId- 11&aid-233, acesso em 28.jan.2000.

(15) No país, conforme a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) de 2001, entre 1991 e 2001 houve redução de 4,5% no número de casamentos. A taxa de nupcialidade legal, que em 1991 era de 7,5 casamentos por mil habitantes com mais de 15 anos, baixou para 5,7 por mil em 2001. A PNAD 2001 confirma a tendência de crescimento da proporção de famílias compostas por mulheres sem cônjuge e com filhos, passando de 15,1% em 1992 para 17,1% em 1999 e atingindo 17,8% em 2001.

(16) BEVILAQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil, 12.ª ed. atual. Rio de Janeiro: F. Alves, 1960, v.º. 2, p. 296.

(17) Assim pensam Luiz Edson FACHIN (Elementos críticos do direito de família. Rio de Janeiro: Renovar, 1999), Maria Helena DINIZ (Curso de Direito Civil brasileiro, 17.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002) e Sílvio RODRIGUES (Direito Civil, v. 6, 27.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002).

(18) A doutrina brasileira a respeito é resumida por Ricardo Rodrigues GAMA: ?na sucessão legítima, o parentesco por afinidade [o que se dá entre um cônjuge e os filhos do outro] não dá direito ao recebimento da herança.? Direito das sucessões. Bauru: Edipro, 1996, p. 112.

Waldyr Grisard Filho é mestre e doutor em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Professor na Faculdade de Direito de Curitiba. Membro do Instituto dos Advogados do Paraná e do Instituto Brasileiro de Direito de Família.

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