Eutanásia: dono da vida, o ser humano é também dono da sua própria morte? (III)

Que o legislador brasileiro deve se dedicar ao tema da eutanásia parece não haver nenhuma dúvida. De qualquer maneira, é certo que essa legislação deve ser cercada de todos os cuidados (lingüísticos e técnicos) para não incorrer em equívocos. Eutanásia (ou eutanásia ativa), ortotanásia (ou eutanásia passiva), morte assistida (ou auxílio ao suicídio), morte medicamente assistida, limitação do esforço terapêutico e sedação paliativa são coisas distintas. Para a mídia a expressão recorrente é ?eutanásia? (tudo é eutanásia), mas é preciso chamar as coisas pelo seu devido nome (e dar-lhes a devida regulamentação).

Quem assistiu ao filme Menina de Ouro viu o que é uma eutanásia (ou eutanásia ativa). Tratava-se de paciente em estado terminal, que padecia grande sofrimento (em razão de ter sido golpeada numa luta de boxe, ficando tetraplégica). Pediu a morte para seu treinador (Clint Eastwood) e foi atendida. No princípio ele desligou o aparelho pelo qual a vítima respirava e, em seguida, ministrou-lhe grande dose de adrenalina, via endovenosa, o que lhe causou uma parada cardiorespiratória. A relação de causa e efeito foi inequívoca: quem causou a morte da paciente foi o seu treinador. Isso se chama eutanásia ativa.

Uma situação dessa no Brasil seria enquadrada como homicídio privilegiado, mesmo que o legislador brasileiro já tivesse disciplinado o assunto. Por quê? Porque o autor da morte não foi um médico. Todos os países que já contam com legislação apropriada exigem que a eutanásia seja praticada por médico (depois de ouvir outros médicos). Aliás, a palavra eutanásia, doutrinariamente, vem sendo reservada para as ações praticadas por profissional da medicina a pedido expresso e reiterado do paciente que padece de sofrimento derivado de uma enfermidade incurável, que ele não suporta. A relação de causa e efeito entre a ação do agente e a morte do paciente é direta e imediata. Isso é eutanásia (ou eutanásia ativa).

O que acaba de ser exposto não se confunde com a ortotanásia (eutanásia passiva), pois nesse último caso a morte não decorre de nenhuma conduta ativa, sim, do desligamento dos aparelhos, da cessação do tratamento, etc. A vítima é morta não por efeito (direto) de uma conduta ativa do agente, sim, pela falta de assistência, que não se confunde com a ?limitação do esforço terapêutico? (caso da americana Terri Schiavo), que consiste numa suspensão progressiva do tratamento nos enfermos irrecuperáveis ou com prognóstico certo de morte em curto prazo.

Tanto a eutanásia (ativa) quanto a ortotanásia deveriam ser rigorosamente disciplinadas (e admitidas) no nosso país (cercando-as de todas as exigências necessárias para que não se produza uma morte arbitrária). Não é diferente a questão do auxílio ao suicídio (a pedido da vítima). É o caso do filme Mar adentro. Ramón Sampedro não tinha condições físicas de se matar. Pediu ajuda para uma amiga (Rosa), que lhe colocou (ao alcance da boca) o veneno. Com esse auxílio Ramón Sampedro se suicidou.

O auxílio medicamente assistido já é admitido em algumas legislações (França, Alemanha, etc.). Mas no caso do filme Mar adentro quem prestou auxílio foi uma amiga (não um médico). Por isso, no Brasil, mesmo que o assunto já tivesse sido cuidado, estaríamos diante de um auxílio ao suicídio, que é crime (nos termos do art. 122 do CP).

Tudo quanto acaba de ser descrito não tem nada a ver com a chamada ?sedação paliativa?, que é uma prática médica amplamente aceita e realizada, no mundo inteiro, e faz parte da arte médica. Consiste em suavizar a dor dos pacientes terminais, que são sedados e dormem profundamente, até a chegada da morte. Na sedação paliativa não se pode vislumbrar qualquer crime.

Em suma, no mundo atual não faz sentido temas tão relevantes ficarem à margem do Direito. Mesmo porque, com ou sem ele, o certo é que uma verdadeira revolução silenciosa já está em andamento. É justamente o que concluiu John Schwartz, em artigo recente publicado na revista The New York Times (artigo reproduzido em suplemento do El País – Espanha – no dia 31.03.05, p. 1): ?Com ou sem leis, muitos americanos estão assumindo um papel ativo em sua própria morte, alguns com a ajuda de seus médicos e outros por meio de ações por sua conta?. Essa, na verdade, é uma tendência mundial. Pela importância do assunto, não deveríamos praticar a política do avestruz (metendo a cabeça na terra, para nada ver).

Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito Penal pela USP, secretário-geral do IPAN (Instituto Panamericano de Política Criminal), consultor e parecerista e diretor-presidente da Rede de Ensino IELF-PRO OMNIS (1.ª Rede de Ensino Telepresencial da América Latina www.proomnis.com.br)

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