Estatuto do desarmamento

?Nada é neutro do ponto de vista axiológico-antropológico…?? Figueiredo Dias

Chamado que fui a participar deste Curso de Atualização em Direito Criminal para Policiais Civis e Militares, promovido pela Escola da Magistratura e Tribunal de Justiça do Paraná, com a participação do Ministério Público, o que muito me honra, foi-me dada a incumbência de tratar sobre pontos a serem discutidos no estatuto do desarmamento Lei 10.826/03.

Isto por si só denota que, para muitos, está claro que algo não vai bem com a legislação em comento. Mas também mostra que a lei posta não pode ser compreendida como um "dogma de fé"!

Para desempenhar a função que me foi atribuída, poderia me utilizar de diversos pilares teóricos. Analisar o Estatuto do Desarmamento pelas várias perspectivas doutrinárias que, de forma científica, têm se manifestado sobre características gerais que se identificam facilmente na aludida lei. Forma também de escapar da discussão precipuamente ideológica, subjetiva, e motivada muito mais por paixões do que por critérios técnicos.

Assim, poderia invocar o que dizem os professores Figueiredo Dias e Costa Andrade, ao criticar Carrara, que via no crime um fato patológico e na lei a possibilidade de cura. No cidadão o pedido de remédio, e no estado seu fornecimento, por mais amargo que fosse. Basta, dizem os professores, estudar a história para ver que esta epidemia jamais foi, sequer, controlada.

O raciocínio criticado faz lembrar que grande conquista criminológica do século passado, foi a assunção da assertiva de que a lei penal não é o remédio para todos os males, e seu recrudescimento não se presta como meio a conter a criminalidade. Poderia ainda invocar o professor René Dotti, quando critica o Direito Penal do Terror.

Poderia ainda trazer à colação a lição do professor Luiz Alberto Machado, quando demonstra a ineficácia do Direito Penal em efetuar o controle social da forma apregoada pelo poder político.

No mesmo sentido, poderia invocar a professora Vera Regina Pereira de Andrade, quando denuncia que à programação legislativa não corresponde a real capacidade operativa do Estado.

Aliás, programação legislativa que nas últimas décadas, na esfera penal, quer dizer recrudescimento. Recrudescimento, como assevera Mauricio Ramires, que não tem partido político nem ideologia. Diz ele, não sem razão, que "a "esquerda’ pode ser mais altruísta nos fins que visa proteger com a tutela penal, mas nos meios é tão repressora quanto seus adversários de direita".

E como o recrudescimento tem sido regra, poderia ainda lembrar Hobbes e seu Leviatã, para quem o Estado tudo pode e a todos absorve. É o mesmo Hobbes que em outra obra (De Cive), apregoa que se o Estado tudo pode, melhor a mentira do que a guerra. Raciocínio que se completa com o do sociólogo Jaques Lenain, quando trabalha o conceito de "mensonge politique".

Poderia lembrar o professor Alberto Binder, quando alerta que, para determinados estados, à guerra externa corresponde a guerra interna. Pois que convém ao estado ter inimigos internos e externos, como forma de legitimar retoricamente sua intromissão cada vez maior na vida (liberdade) dos cidadãos.

Diga-se que no Brasil, a lei 9.437/97 que instituiu o Sinarm já previa recadastramento de armas. Apenas 2% das armas sem registro que se imaginava fossem ser "legalizadas", de fato o foram. Diga-se ainda que imaginava-se (ou melhor, se prometia), que a criminalidade iria baixar por conta daquele estatuto, que ao recrudescer penas, transformava a contravenção de porte de arma em crime. Crime que, em seguida, foi considerado de menor potencial ofensivo pela lei dos Juizados Especiais Criminais Federais (deixo de comentar a necessária coerência interna do sistema jurídico).

Agora, com nova roupagem, com penas mais severas, promete-se os mesmos efeitos. Aliás, talvez se obtenha os mesmos efeitos, mas não aqueles prometidos pela programação penal, e sim aqueles de fato, anteriormente verificados.

Ao final, além do descrédito do direito penal, por certo os órgãos oficiais de controle social aqui representados, partilharão o mesmo desvalor.

Poderia alguém questionar: mas não teremos um plebiscito para decidir democraticamente sobre a possibilidade de vendas de armas no país? Respondo lembrando a escola de Kiel, que sustentava que os crimes deveriam ser ditados pelo são espírito do povo Alemão. Só não posso deixar de lembrar que a Escola de Kiel teve seu ápice durante o regime Nazista.

Mas se tudo isto se transforma em lei, (principio da legalidade como garantia do cidadão e limite do poder do Estado) haveria ainda de lembrar o professor Clemerson Merlin Cléve, quando assinala que mesmo o direito sendo produto de um processo dialético, infelizmente nem sempre as melhores conquistas acabam sendo positivadas em lei.

Poderia também, desde esta perspectiva, desenvolver questionamento sobre a legitimidade constitucional dos tipos de perigo abstrato, que inundam a legislação em comento.

Poderia ainda lembrar o professor Raul Machado Horta, quando ao citar o professor Canotilho, assevera que não se pode, de maneira nenhuma, voltar atrás em conquistas democráticas. Basta refletir sobre as condutas incriminadas no Estatuto do Desarmamento, às quais se prevê sejam inafiançáveis e insuscetíveis de liberdade provisória. Se a liberdade é a regra, a prisão deveria ser a exceção.

Poderia ainda invocar que a cadeia não reeduca, não permite re-inserção social, ao contrário, promove aculturação e só serve como castigo. Se então o único objetivo que realmente alcança é castigar, não vislumbro como possa cumprir com as demais promessas.

Poderiam agora, alguns dos presentes, invocar as estatísticas oficiais, que apontam para uma diminuição da criminalidade violenta (da qual o homicídio é a forma mais visível) após a edição da Lei 10.826/03. A estes, remeto à página web da Senasp, no que diz respeito às estatísticas. Duas conclusões saltam aos olhos. A primeira delas é que 50% dos homicídios são praticados em 1% das cidades Brasileiras. Estar-se-ia então, fazendo uma lei para atender 1% do território nacional (ou 25% da população brasileira), ainda que válida em toda sua extensão. Dados, alerte-se, coletados a partir do sistema de saúde, pois que reconhecidos pela Senasp como melhores do que os dados fornecidos pelos órgãos de segurança pública.

Lembro ainda o que dizem Figueiredo Dias e Costa Andrade sobre as estatísticas, asseverando que o salto qualitativo da criminologia se deu quando, por conta do corte epistemológico que permitiu a superação da criminologia tradicional, passou-se a desacreditar as estatísticas oficiais como forma de se conhecer sobre o crime.

Mais honesto foi o Governador do Estado Roberto Requião quando, em cerimônia pública de destruição de armas de fogo, limitou as expectativas quanto à Lei do Desarmamento, afirmando que de fato não se prestava a conter a grande ou a média criminalidade. E sim, a coibir que, pessoas que têm armas em casa e que não têm hábitos criminosos, pudessem delas fazer uso quando, em situações extremas, acabassem por perder o auto-controle.

Das diversas possibilidades que tinha para abordar o tema proposto, só não poderia deixar de lembrar duas delas. A primeira, que as normas penais e processuais penais devem ser compreendidas desde um prisma constitucional, e portanto, como forma de limitar, e não de alargar o poder punitivo do Estado. A segunda, expressa pelo Professor Jacinto Nelson de Miranda Coutinho que, durante Congresso Nacional de Direito Constitucional, disse taxativamente que já estava na hora de levar o Brasil a sério.

Por fim, quero deixar alguns pontos a serem objeto de reflexão.

O primeiro, a impossibilidade de as instituições estatais poderem fazer uso das armas arrecadadas por conta do desarmamento da população, mormente quando há estados como o nosso em que, só no âmbito da Polícia Civil, há uma carência imediata de cerca de 4.000 armas de fogo.

O segundo, diz respeito ao Princípio Federativo (constitucionalmente previsto). Desde meu ponto de vista, centralizar o controle de registros de armas de fogo e as concessões de portes de arma, junto ao Ministério da Justiça, concentrando-os em Brasília, fere de morte o principio citado, pois que exclui os Estados Membros da gestão/administração da justiça (que é aplicada por jurisdição em nível estatal) em seus territórios. Aliás, necessário novamente lembrar o Professor Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, quando diz que Brasília está longe demais do Brasil.

O terceiro, diz respeito à falta de campanhas de esclarecimento à população sobre a posse segura de armas de fogo. Não vislumbro um futuro melhor sem educação.

Quero também deixar a pergunta sobre a razoabilidade e a proporcionalidade de se fixar em R$ 300,00 a taxa a ser paga a cada 3 anos, para manutenção do registro de arma de fogo, se comparada com o salário mínimo de R$ 260,00. Qual isonomia de tratamento possível, entre o direito de ter arma de fogo dos que têm mais posses e dos que não as têm?

E por último, a necessidade de se discutir com consciência política (democrática), cívica e social, quais os parâmetros em que se deve estabelecer o plebiscito sobre a venda de armas no país.

Luís  Fernando  Viana  Artigas  Jr é delegado de Polícia. Palestra apresentada no dia 29 de abril de 2005, em Seminário sobre Direito Criminal e ECA.

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