Enunciando a família brasileira contemporânea

Os resultados da III Jornada de Direito Civil levada a efeito em dezembro último no âmbito do Centro de Estudos da Judiciários, do Conselho da Justiça Federal, no STJ, em Brasília, indicam por meio dos enunciados aprovados, à guisa de interpretação do Código Civil de 2002, a consolidação de um novo desenho jurídico para o Direito de Família no Brasil.

A superação do estrito conceito de culpa e a conseqüente objetivação das rupturas pode ser citada como um dos aspectos relevantes dessa arquitetura jurídica contemporânea. Assim é que foi aprovado enunciado interpretativo do art. 1.573 do CCB, atestando que o juiz poderá decretar a separação do casal diante da constatação da insubsistência da comunhão plena de vida sem atribuir culpa a nenhum dos cônjuges.

Ainda mais proeminente é a chancela jurídica à dimensão afetiva da família, veiculada claramente no enunciado interpretativo do art. 1.593: ?A posse do estado de filho (parentalidade socioafetiva) constitui modalidade de parentesco civil?.

Demais disso, a pluralidade familiar e os desafios científicos agravados ao início do novo século se fizeram presentes em inúmeros enunciados que evidenciam o enfrentamento e tomada de posição em matérias polêmicas. São exemplos dessa ordem de idéias, de um lado, o enunciado segundo o qual a regra do art. 1.798 do Código Civil deve ser estendida aos embriões formados mediante o uso de técnicas de reprodução assistida, abrangendo, assim, a vocação hereditária da pessoa humana a nascer cujos efeitos patrimoniais se submetem às regras previstas para a petição da herança, e de outro, o enunciado elucidativo de que as expressões ?fecundação artificial?, ?concepção artificial? e ?inseminação artificial? constantes, respectivamente, dos incisos III, IV e V do artigo 1597 do Código Civil devem ser interpretadas restritivamente, não abrangendo a utilização de óvulos doados e a gestação de substituição.

No campo do direito matrimonial, solvendo grave problema de direito intertemporal, aos artigos 1.639, § 2.º e 2.039 foram propostos e aprovados enunciados cujos termos originais resultaram em redação única abrigando o entendimento segundo o qual a alteração do regime de bens prevista no parágrafo 2.º do art. 1.639 do Código Civil também é permitida nos casamentos realizados na vigência da legislação anterior.

A temática das sucessões também emergiu com ênfase nos afazeres levados a efeito. Merece destaque o enunciado ao art. 1.829, inciso I, o qual só assegura ao cônjuge sobrevivente o direito de concorrência com os descendentes do autor da herança quando casados no regime da separação convencional de bens ou, se casados nos regimes da comunhão parcial ou participação final nos aqüestos, o falecido possuísse bens particulares, hipóteses em que a concorrência restringe-se a tais bens, devendo os bens comuns (meação) ser partilhados exclusivamente entre os descendentes.

Reunindo estudiosos e especialistas nos diversos temas propostos, a exemplar e elogiável iniciativa pioneira do Ministro Ruy Rosado cumpre relevantíssimo papel no cenário da hermenêutica crítica e construtiva do novo Código Civil brasileiro.

Notícia auspiciosa foi dada ao final dos trabalhos pelo ministro Ary Pargendler, Coordenador Geral, ao anunciar a instituição em caráter permanente da Jornada, compondo desde logo comissões temáticas que contribuirão na sistematização dos procedimentos e da apreciação dos enunciados nos eventos futuros.

Sem terem efeito vinculante nem constituírem formulações imutáveis, os enunciados realizam, por essa via, uma clara demonstração que doutrina e jurisprudência brasileiras podem trilhar sendas comuns na aplicação concreta do novo Código Civil. Daí se vê papel construtivo importante a desempenhar, uma vez que lei alguma nasce promulgando códigos prontos e acabados. A vida dos Códigos (e o próprio código da vida) não se faz no parto e sim no partir.

Luiz Edson Fachin é professor Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da UFPR – Universidade Federal do Paraná; diretor Regional Sul do IBDFAM; membro da Comissão ministerial vinculada à Secretaria da Reforma do Poder Judiciário do Ministério da Justiça; membro da Academia Brasileira de Direito Constitucional; doutor em "Direito das Relações Sociais" pela PUC/SP – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; membro da "International Society of Family Law", do IAB, do IAP e da APLJ – Academia Paranaense de Letras Jurídicas; autor de diversas obras e artigos.

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