Em defesa do foro especial

Magistrados e promotores de primeira instância, com exceções, movem guerra sem trégua à reserva de foro especial por prerrogativa de função político-administrativa.

O analista isento pode observar, nessa impetuosa luta, um indisfarçável ceticismo quanto à imparcialidade dos tribunais. Tal suspeição está implícita na única arma por eles empunhada: desqualificar o foro especial como privilégio. Neste, residiria implícita a presunção de impunidade.

À parte o fato de que os opositores do foro especial amanhã poderão integrar tribunais, eles dispensam-se de provar a superioridade judicante do juízo monocrático sobre o juízo colegiado. Outrossim, desconsideram a perda do sucumbente de um grau de jurisdição, agravada pelo inviável reexame de prova em sede recursal.

Presentemente, retoma-se o debate em torno da Lei n.º 10.628/02, a qual conferiu nova redação ao art. 84 do CPP, para assegurar foro especial a ex-agentes públicos, que o detinham na atividade. Este diploma legal, argumentam, teria restaurado a extinta Súmula 394 do STF e usurpado competência da emenda constitucional.

Rogo vênia para defender a validez jurídica da focalizada lei.

A Súmula 394 do STF consubstanciava ?a jurisprudência sesquicentenária?, no dizer do Min, Pertence. Esta foi cancelada, em 15/08/99, por ocasião do julgamento de ex-deputado federal, autor de falsidade ideológica (emissão de documento falso), ilícito sem nenhum vínculo com a função pública exercida pelo réu. (Inquérito 687, Rel. Min. Sanches). A questão ressurgiu no Inquérito n.º 881-MT, onde aquele cancelamento restou confirmado. Importante realçar o voto-vista proferido pelo Min. Pertence, no qual, depois de tecer judicioso escorço histórico do instituto, associou-se à extinção da Súmula 394 porque, ?o teor literal da Súmula 394 vai além da jurisprudência que pretendeu retratar?. Por isso, propôs a edição de nova súmula fiel a CF/88, rejeitada por 7×4 votos, com o seguinte enunciado: ?Cometido o crime no exercício do cargo ou a pretexto de exercê-lo, prevalece a competência por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício funcional?. (Inquérito 881-MT Pleno – RTJ 179/440)

Do painel acima delineado, colhe-se primeiramente que os vetustos julgados, geradores da Súmula 394, eram construção pretoriana autônoma, porquanto não traduziam interpretação de expressos preceitos constitucionais análogos aos inseridos na CF/88. Desta sorte, não houve declaração de sua inconstitucionalidade. Nem poderia ter havido, por dois motivos. O primeiro, porque a súmula carece de normatividade. De fato, consoante Nelson Nery, se em Portugal, a súmula é norma (art. 2.º do Código Civil), ?No Brasil, não; é apenas um expediente de facilitação da vida do tribunal, no sentido de uniformizar a sua jurisprudência interna, que nem vincula outros juizes e outros tribunais? (?A nova Lei de Recursos – Lei 8.038/90?, in Revista Trimestral de Direito Público, Malheiros, 2/310). Igual parecer subscreve o Min. Pertence: ?Súmula dizia o meu saudoso mestre Victor Nunes não é norma a interpretar, mas interpretação de norma?. (voto no Acórdão n.º 12.079-ES, no TSE Jurispr. Trib. Sup. Eleit., 1995, v. 6, n.º 4, p. 220). O segundo, porque o STF tem como axiomático que os atos preexistentes e incompatíveis com a nova Carta Magna são automaticamente revogados, já que a inconstitucionalidade antecipada seria um contra-senso (cf. acórdãos publicados nas RTJ 153/515, 145/137, 145/339, 143/859, 142/365, 142/22, 141/362, 141,56, 141/50, 140/427, 140/383, 130/427). Na verdade, o STF reputou a Súmula 394 como não recebida pela CF/88.

Destarte, o vazio jurídico causado pelo cancelamento da Súmula 394 compeliu o legislador ordinário a resgatar a matéria cativa da lei, secular e indevidamente cooptada pela jurisprudência. Logo, é descabido contrapor a súmula à lei, como se à lei federal fosse defeso legislar sobre matéria processual em sentido contrário ao estabelecido pela jurisprudência. Não é pertinente a objeção, argüida por uns e outros, escorada no princípio da separação dos Poderes. A falsa antinomia, aqui, é menos de hierarquia do que atinente à competência para regrar a matéria. E, no caso, a lei instaurou legitimamente norma confortada na CF/88.

São baldadas as tentativas de desqualificar a conveniência e oportunidade da Lei n.º 10.628/02. Em geral, setores intentam deslegitimá-la classificando-a como ação do legislador ?descontente? e subversivo da função jurisdicional do STF.

A censura não colhe porquanto repousa na impenetrável intenção do legislador. O sábio Pontes de Miranda concebe a lei como ato político por excelência (?Comentários à Constituição c/Emenda n.º 1/69?, Forense, 1987, T II, p. 111). A lição esclarece o porquê de a jurisprudência vedar ao Judiciário o imiscuir-se nos motivos, intrinsecamente discricionários, da lei (RTJ 147/845, 144/77, 136/500). Sobre a desvalia da eventual intenção do legislador como forma rudimentar de interpretação jurídica, o saudoso jurista Geraldo Ataliba recorda passagem de voto proferido pelo Min. Aliomar Baleeiro, no STF, assim grafada: ?não me cabe psicanalisar os eminentes representantes da nação?…?Não julgo a lei, julgo segundo a lei?. (?Limites à Revisão Constitucional de 1991?, in Revista Trimestral de Direito Público, Malheiros, 3/43). No caso de legisladores falecidos a entrevista resvala no imponderável. Em rigor exegético, Miguel Reale encerra a questão com o escólio de Adolf Wach, sempre citado: ?A lei pode ser mais sábia do que o legislador?. (?Filosofia do Direito?, Saraiva, 1975, 7.ª ed., v. 2.º, p.378).

Inobstante o magistério do doutos, e antecipando-se ao STF, o TJPR, por maioria de votos, declarou a inconstitucionalidade da Lei n.º 10.628/02, em 04/04/03, na assentada de julgamento dos HC n.ºs. 137.186-4, 137.187-1, 137.208-5, 137.237-6 e 137.238-3.

Entretanto, nas ADIN n.º 2.797 e 2.860, em que a AMB e a CONAMP, respectivamente, pleiteiam a declaração da inconstitucionalidade dos §§ 1.º e 2.º do art. 84 do CPP, acrescentados pela Lei n.º 10.628/02, o STF indeferiu o pedido de suspensão cautelar, estando o mérito pendente de julgamento. Assim, a despeito do decidido pelo TJPR, a Lei é aplicável. A propósito, a Ministra Ellen Gracie afirmou não vislumbrar diferença entre a cautelar concedida na ação de constitucionalidade e a cautelar indeferida na ação de inconstitucionalidade. Donde, sua conclusão: ?Em ambas as situações, as leis estão sendo consideradas constitucionais pelo STF, ainda que não em juízo definitivo? (RTJ 190/481). O seguinte exemplo é esclarecedor. A Lei n.º 8.429/92 teve sua inconstitucionalidade arguida por meio da ADIN n.º 2182-DF. O STF, por maioria, indeferiu o pedido de suspensão cautelar dos seus efeitos, na sessão de 3105/2000. Todavia, ao que se sabe, a ninguém acudiu a extravagante idéia de negar-lhe aplicabilidade, por falta de pronunciamento definitivo da Corte Suprema. Ao contrário, nenhuma lei singular a supera na assídua freqüência às páginas das gazetas oficiais. Sobre os que imaginam alguma diferença entre a Lei n.º 8.429/92 e a Lei n.º 10.628/03, recai a incumbência de justificar o trato discriminatório emprestado à esta última. Logo, é razoável supor que a decisão do STF, lançada sobre a Lei n.º 10.628/03, em 08/01/03, teria irradiado efeito vinculante do Judiciário e eficácia ?erga omnes?, tal a decisão positiva na cautelar em ação direta de inconstitucionalidade (RTJ 190/221). Nessa circunstância, era existente um obstáculo instransponível às mencionadas decisões do TJPR, formalizadas ?posteriori?. O foro do STF já estava prevento.

Bem por isso, a Corte Especial do STJ proclama a aplicabilidade do art. 84 do CPP, alterado pela Lei n.º 10.628/02. (HC 37.709/SP Rel. Min. Gilson Dipp 5.ª T, STJ, DJU 28/03/05, p. 298) Idem: RHC n.º 16.797/GO Rel. Min. Gilson Dipp; MC n.º 8771/RS Rel. Min. Luiz Fux; RHC 17.086/PR Rel. Min. Gilson Dipp; RESP n.º 665.774/RS ; MC n.º 8693/RS Rel. Min. José Delgado. O precedente em que se apoiam referidas decisões é do STF e está assim enunciado: ?Enquanto não sobrevier o julgamento de mérito da ADI 2.797, é desta colenda Corte, nos termos do art. 84, § 2.º, do Código de Processo Penal (redação dada pela Lei n.º 10.628/2002), a competência para processar e julgar ação de improbidade administrativa a ser ajuizada em face de Senador da República.? (AgRg na Rcl. 2.381-MG, relator Min. Carlos Ayres Brito DJU 02/04/2004). Ele ratifica os cinco votos já proferidos na Reclamação n.º 2.138-DF em favor do foro por prerrogativa funcional a agentes políticos processados por improbidade administrativa, na forma da Lei n.º 8.429/92.

Mencionei antes o Acórdão n.º 5336-OE do TJPR, que declarou a inconstitucionalidade formal da Lei n.º 10.628/02. O aresto sustenta que a Constituição do Paraná, ao especificar-lhe as atribuições judicantes, não contemplou a de julgar ex-agentes públicos por crimes ou atos de improbidade ?propter officium?. Pode então concluir que a Lei n.º 10.628/02, ampliando o rol de suas atribuições, usurpou matéria cativa da emenda constitucional estadual. Logo, contraiu o vício de inconstitucionalidade formal. Não lhe assiste razão. Além de a matéria já se encontrar sob o exame do STF, é forçoso reconhecer que a CF/88 não autoriza Tribunais de Justiça julgarem da constitucionalidade de lei federal em face da Constituição Estadual. Impossível a lei federal violar a Constituição de Estado sem ferir antes a Constituição da República. É sabido que o controle difuso é franqueado a juiz ou tribunal. Porém, tratando-se de lei federal sua aferição limita-se ao texto da Carta Magna. Frente à Constituição de cada Estado federado o contraste restringe-se às respectivas leis estaduais e municipais.

Diferentemente do TJPR, o TRF da 4.ª Região, através de sua 4.ª Seção, deu um passo à frente e declarou constitucional a Lei n.º 10.628/02 ?no que se refere à nova redação do art. 84 do CPP, reafirmando sua competência para julgar ex-prefeito por prerrogativa de função?. (Rec. Sent. Estr. n.º 2003.70.05.000191-0/PR Rel. Des.ª. Fed. Maria de Fátima Freitas Labarrère j. 16/12/03).

Também noutras searas colhem-se elementos favoráveis à aplicabilidade da Lei n.º 10.628/02. Com efeito, a Lei n.º 10.683/03 (ex-medida provisória) equiparou a ministro o Secretário do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, com o intuito de assegurar o julgamento, pelo STF, do então titular, ex-prefeito de Porto Alegre, réu em ação penal baseada no Dec.-Lei n.º 201/67 em trâmite no TJRS. No entremeio da discussão sobre se, da condição de ministro outorgada pela mencionada lei ordinária, derivava a competência do STF para julgá-lo, naquele processo, sobreveio-lhe a nomeação como Ministro da Educação. (QO na Petição n.º 3003-RS Rel. Min. Carlos Britto, 01/04/2004 RTJ 190/247). Ao depois, a Lei n.º 11.036/04 alterou o art. 25, parágrafo único, da Lei n.º 10.683/03 (ex-medida provisória), a fim de incluir o Presidente do Banco Central (autarquia) no rol dos Ministros de Estado. Sua constitucionalidade foi reconhecida pelo STF, na sessão de 5 de maio último, quando julgou improcedentes as ADIns n.º 3.280-DF e n.º 3.289-DF. Desfrutando do ?status? de ministro, o titular do referido cargo, doravante, passa a gozar do foro especial, ex vi do art. 102, I, c, da CF/88 (STF), nas infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade. Tanto é que, em seguida, o procurador-geral da República pleiteou e obteve, junto ao STF, a instauração de investigação acerca de rumorosas irregularidades praticadas pelo atual ocupante da Presidência do Banco Central. O processamento da ação importou submetê-lo ao foro especial.

No TJPR, apesar de haver declarado a inconstitucionalidade formal da Lei n.º 10.682/02, seus órgãos fracionários concederam foro especial a Juiz de Direito (Acórdão n.º 1.065, 3.º Grupo de Câmaras Cíveis e Acórdão unân. n.º 24.536 2.ª Câmara Cível) e a Promotor Público (Acórdão n.º 24938 2.ª Câmara Cível), com a agravante de incidir sobre ações civis de improbidade. No entanto, o art. 102, VII, ?a? da Constituição do Paraná, sujeita juizes e promotores ao foro especial, limitado aos crimes comuns e aos de responsabilidade. De forma eloqüente, silencia a respeito dos atos de improbidade. Estas decisões lastreiam-se, respectivamente, na Lei Orgânica da Magistratura Nacional e na Lei Orgânica do Ministério Público.

Ora, se as citadas leis, por si sós, ostentam aptidão jurídica suficiente a assegurar o foro especial aos magistrados e promotores públicos incursos na Lei 8.429/92, não há como recusar à Lei 10.628/02 eficácia para ensejar o foro especial a ex-administrador público acusado por crime funcional.

Destarte, a referenciada jurisprudência revela que tanto o Estatuto da Magistratura ou do Ministério Público quanto a Lei n.º 10.628/02, não visam alterar o repertório de competências judicantes dos Tribunais de Justiça. Seu propósito cinge-se no instituir predicamento processual a determinados sujeitos.

Restritas a este objetivo, a mencionadas Leis editam regras pertinentes à suas competências normativas inscritas no art. 22, I, da CF/88 (direito processual), portanto, originárias de fonte legítima e a cujo cumprimento os Tribunais não se podem furtar até que a Corte Constitucional pronuncie-se em definitivo sobre a focalizada Lei n.º 10.628/02, objeto das ADIns n.ºs. 3280-DF e 3289-DF.

Forçosa a conclusão de que o repertório de competências jurisdicionais dos Pretórios não ostenta a pétrea imutabilidade por muitos pretendida. A tese conta com autorizados abonos, segundo se vê de parte deste despacho concessivo de liminar em feito movido por altas autoridades federais, na busca de foro especial para ações de improbidade calcadas na Lei n.º 8.429/92: ?A atual Constituição determina, expressamente, que cabe aos Tribunais de Justiça o julgamento dos prefeitos. O Supremo Tribunal Federal, entretanto, estabeleceu distinções. Tratando-se de crime eleitoral será o prefeito julgado pelo Tribunal Regional Eleitoral; se a acusação referi-se a crime federal, o julgamento far-se-á por Tribunal Regional Federal. Nenhuma disposição, entretanto, atribui, para isso, competência a tais Cortes. Vê-se que se admitiu fosse ampliado o que está implícito no texto, para fazer compreender outras hipóteses que logicamente, tendo em vista o sistema, nele se haveriam de ter como contidas? (trecho da decisão do Min. Nelson Jobim, na Rcl. n.º 2.138, reproduzido pelo Min. Gilmar Mendes, na Rcl. n.º 2.138).

Reginaldo Fanchin é advogado em Curitiba.

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