Receita investiga máfia do combustível

Brasília  – A Receita Federal concluiu uma radiografia completa das quadrilhas que atuam no setor de combustíveis em todo o Brasil. Um dossiê com mais de cem páginas ? que resume o trabalho de dois meses de intensas investigações ? traça um organograma da atuação da máfia. A ousadia das quadrilhas é tanta que um terreno baldio consta como endereço de um posto que comprou 19,5 milhões de litros de combustíveis da Petrobras.

O posto fantasma usou uma liminar que obteve na Justiça para deixar de recolher cerca de R$ 20 milhões em Contribuição de Intervenção sobre Domínio Econômico (Cide). A audácia no caso do terreno baldio só é superada pelo da garagem de uma casa em São Paulo, endereço de um outro posto da mesma quadrilha, que comprou dez milhões de litros de combustíveis.

O chefe de um dos principais grupos é um paulista que abriu uma distribuidora em São Paulo, cuja matriz e sócia majoritária fica no Uruguai. Como brasileiro, ele detém apenas 1% do capital da empresa. O restante pertence à sócia uruguaia, da qual é o proprietário. Com isso, ele mantém todos os bens resguardados e protegidos no exterior, longe dos olhos da Receita. Já uma outra quadrilha recorreu às Ilhas Virgens Britânicas como sede da principal sócia da distribuidora no Brasil para escapar do Fisco.

O dossiê da Receita selecionou 50 postos e distribuidoras que se dividem em dezenas de filiais em todo o país e são comandados por 11 quadrilhas. Na grande maioria dos casos, a Receita já tem indícios de que as empresas teriam movimentado muito mais recursos do que declararam ao governo. Apenas uma distribuidora teria movimentado mais de R$ 3 bilhões em 2001 e 2002, sem declarar um centavo sequer ao Fisco.

Com base nesse documento, a Receita já abriu processos de fiscalização contra 50 empresas e 30 pessoas físicas que são ligadas a elas. Boa parte desses contribuintes está há mais de três anos sem prestar contas ao Leão.

Pelos cálculos do Fisco, a perda da arrecadação com a Cide foi de R$ 290 milhões em 2002. De janeiro a março deste ano, 38 empresas fiscalizadas foram autuadas em R$ 16,6 milhões. A estimativa é de que as liminares já tenham reduzido as receitas com a Cide este ano em R$ 780 milhões, na comparação com o que o governo esperava arrecadar.

No ano passado, as 50 empresas selecionadas deixaram de pagar R$ 626,14 milhões em PIS, Cofins, Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), CPMF e Imposto de Renda (IR). Tanto as empresas quanto as pessoas físicas envolvidas em irregularidades no setor estão relacionadas no dossiê com base nos números de CPF e CNPJ, além de seu histórico fiscal. Por motivo de sigilo fiscal, os nomes e os documentos desses contribuintes não podem ser revelados.

Cada uma das quadrilhas é identificada com base em um organograma que mostra a relação entre as distribuidoras, postos, suas filiais e os proprietários. A Receita também está comparando a movimentação financeira de cada um desses contribuintes com as suas respectivas declarações do Imposto de Renda.

É com base nessa documentação que a Receita pretende fazer uma verdadeira varredura em distribuidoras e postos de gasolina de todo o país. Os fiscais desconfiam que boa parte das empresas que sonegam impostos adultera os combustíveis que vendem aos consumidores.

Ao deixar de recolher os tributos, esses postos e distribuidoras conseguem fazer pequenos descontos nos preços dos combustíveis que vendem ao consumidor e ainda aumentar a sua margem de lucro. Eles vendem gasolina, álcool e diesel por intermédio dos postos vinculados a eles ou fazem distribuição para outros revendedores.

? Já chegamos a um posto que era só uma mesa e um telefone, numa sala em uma cidade do interior do País. Esses grupos ganham milhões de reais em apenas alguns dias ? disse um técnico da Receita.

Os efeitos da indústria de liminares e da adulteração de combustíveis para os consumidores e para os concorrentes também preocupa a Secretaria de Direito Econômico (SDE) do Ministério da Justiça. O secretário da SDE, Daniel Goldberg, quer que a Agência Nacional do Petróleo (ANP) prepare uma lista positiva dos postos de combustíveis que ofereçam aos consumidores os produtos de maior qualidade e pelo melhor preço.

Segundo Goldberg, a lista seria uma forma de evitar que as pessoas abasteçam em postos que vendem os combustíveis por um valor muito abaixo do mercado, o que, na maioria dos casos, significa que o produto foi adulterado ou que o estabelecimento obteve uma liminar na Justiça para não pagar impostos. A proposta ainda está sendo analisada pela ANP:

? A lista positiva mostraria aos consumidores o melhor custo/benefício. É preciso premiar quem oferece maiores vantagens à população.

O secretário afirmou ainda que a indústria das liminares no setor de combustíveis e a adulteração dos produtos estão ligadas aos cartéis de postos identificados em quase todos os estados brasileiros.

Segundo a SDE, estão em curso hoje 237 investigações de cartelização nos setores de combustíveis líquidos e de GLP. Destes, 23 são processos administrativos. No total, estão em tramitação na SDE 380 investigações de cartel envolvendo diferentes setores da economia, o que significa que 62% delas estão no setor de combustíveis.

Mas até hoje só dois processos administrativos de combustíveis foram julgados e condenados pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). O primeiro, julgado em março de 2002, é relativo a um cartel de postos de Florianópolis. Os envolvidos foram condenados e receberam multa de 10% de seu faturamento bruto no ano anterior à infração (99).

O segundo, julgado em julho de 2002, envolveu um cartel de postos do Sindicato do Comércio Varejista de Derivados de Petróleo de Goiás. O sindicato foi multado em R$ 190 mil e seu presidente, José Batista Neto, em R$ 95 mil.

Isto é o que o governo já descobriu

OS NÚMEROS

50 postos e distribuidoras foram investigados pelo Fisco, 14 empresas apresentaram fortes indícios de irregularidades, 30 sócios sob suspeita, 11 quadrilhas R$ 290 milhões em autuações por sonegação da Cide, R$ 626,13 milhões em autuações por sonegação relativas de outros tributos. Entre 1996 e 2003, a Receita Federal fiscalizou 492 distribuidoras e 1.967 postos.

AUTUAÇÕES APLICADAS POR NÃO-PAGAMENTO DA CIDE

Em 2001, foram autuadas 73 distribuidoras, em valores totais de R$ 471,6 milhões; e 273 postos (R$ 66,74 milhões).

Em 2002, foram 33 distribuidoras, somando R$ 379,2 milhões, e 136 postos, num total de R$ 80,16 milhões.

Em 2003, já foram autuadas seis distribuidoras, o que representa R$ 9,5 milhões; e 32 postos, outros R$ 7,19 milhões.

SDE

PROCESSOS REFERENTES AO SETOR DE COMBUSTÍVEIS

Há 380 investigações em andamento.

São 237 investigações no setor de combustíveis líquidos e GLP, o que representa 62% do total das investigações da SDE.

Há 23 processos administrativos no setor de combustíveis líquidos e GLP, sendo 17 relativos a combustíveis e seis a GLP.

PROCESSOS ADMINISTRATIVOS JULGADOS PELO CADE

O primeiro processo, julgado em março de 2002, é referente a um cartel de postos da cidade de Florianópolis. Os envolvidos foram condenados e receberam uma multa equivalente a 10% de seu faturamento bruto no ano anterior à infração (1999).

O segundo processo administrativo, julgado em julho do ano passado, envolveu um cartel de postos do Sindicato do Comércio Varejista de Derivados de Petróleo de Goiás (Sindiposto). O sindicato foi multado em R$ 190 mil e seu presidente, José Batista Neto, em outros R$ 95 mil.

Estão à espera de julgamento no Cade processos de Belo Horizonte, Lages (Santa Catarina), Recife e Brasília.

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