A Europa se abre aos transgênicos

O prometido projeto de lei que definirá a política do governo Lula para os transgênicos deverá autorizar o plantio e a comercialização desses alimentos, decerto dentro de normas não muito diferentes daquelas aprovadas, nesta semana, pelo Parlamento Europeu. Há cinco anos, sob intensa pressão dos movimentos ecofundamentalistas, o lobby formidável do ultraprotegido setor agrícola e também do grande público – sob o impacto das mortes pela “doença da vaca louca” e do pânico semeado pelos tablóides sensacionalistas em relação às “comidas Frankenstein”, como deram de dizer -, a União Européia impôs uma moratória ao cultivo e importação de novas variedades transgênicas. Ficaram a salvo da proibição as dezoito espécies que já haviam sido liberadas nos países membros, entre as quais a soja GM (geneticamente modificada).

O ato do Parlamento Europeu antecipa o arquivamento de uma decisão que só favoreceu os fazendeiros interessados em evitar a concorrência com os produtos americanos. Nos Estados Unidos, as culturas GM ocupam área equivalente a 2/3 do total plantado com transgênicos no mundo; os alimentos deles derivados são consumidos desde meados da década passada, sem que tenham provocado qualquer malefício à saúde. A segurança dos transgênicos, atestada em exaustivas pesquisas, é invocada por Washington para considerar puro protecionismo a moratória européia. Há poucas semanas, os Estados Unidos resolveram recorrer à Organização Mundial do Comércio (OMC) contra a proibição, que priva os agricultores americanos de centenas de milhões de dólares em exportações.

Menciona-se esse contencioso para ressaltar que a resistência aos transgênicos não é apenas destituída de base científica – visto que não causam dano à saúde, e ainda não se provou que causem dano ao ambiente -, mas é também contaminada por interesses econômicos, camuflados, ironicamente, nas acusações de que o uso generalizado de sementes transgênicas subordinará a agricultura, em toda parte, às multinacionais da biotecnologia. (Se esse, de fato, fosse o problema, os opositores da transgenia no Brasil que integram o governo não teriam erguido mil e um obstáculos ao desenvolvimento de sementes GM nacionais, em centros de excelência como a Embrapa e institutos agronômicos de vários estados.) Atualmente, a julgar pela decisão dos deputados europeus, a única forma realista de aplacar o obscurantismo dos desinformados e o vozerio dos mal-intencionados é autorizar os transgênicos, sob severas condições. Por isso, a nova legislação da UE é a mais estrita e abrangente do mundo. Ela obriga produtores e importadores a identificar com um código especial os carregamentos de grãos GM para poderem ser rastreados desde as fazendas de origem até a etapa final da cadeia produtiva. Além disso, os países da UE deverão “adotar medidas para impedir a presença não intencional de organismos GM em outros produtos”, fixando distâncias mínimas entre plantações ou banindo as culturas transgênicas de certas áreas. As regras especialmente draconianas dizem respeito à rotulagem. Deverão ser rotulados não só alimentos obtidos por engenharia genética, destinados ao consumo humano, mas também rações. Não só aqueles que contenham no mínimo 0,9% de componentes transgênicos, mas também os que, derivados de grãos GM, como o óleo de soja, passam por processos industriais que deles eliminam as substâncias resultantes da inserção, na planta, do gene de outra espécie.

Do ponto de vista exclusivamente científico, não haveria motivos para rotular os transgênicos, pois, no dizer dos especialistas, são “substancialmente equivalentes” aos outros produtos. Um alimento GM rico em determinado tipo de gordura, por exemplo, é tão ruim para o colesterol quanto a sua versão tradicional. Nos Estados Unidos, onde a embalagem dos alimentos traz uma quantidade extravagante de informações e advertências, não se exige que sejam diferenciados pela origem genética de seus ingredientes. Já nos países onde os consumidores foram induzidos a evitar as comidas GM ou têm nebulosa noção do que isso significa, a rotulagem tende a ter, como já se disse, o mesmo efeito amedrontador da caveira sobre duas tíbias cruzadas que simboliza perigo; não se atentará para o fato de que, fossem mesmo perigosos, seriam proibidos. Mas, por ora, parece não haver escapatória. Resta saber quanto tempo passará até que o bom senso prevaleça de vez sobre a paranóia, e o progresso, sobre o atraso.

Transcrito do jornal O Estado de S.Paulo (edição de 6/07/2003, p. A3)

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