E quando o operador do Direito não conhece direito o seu instrumento de trabalho?

As relações em comunidade, nos Estados Democráticos de Direito, têm, em geral, limitações impostas por uma quantidade imensurável de regramentos legais. São as normas constitucionais com suas emendas, as leis complementares, as leis ordinárias, as leis delegadas, as medidas provisórias, os decretos legislativos, as resoluções etc. São tantas ?leis? que é impossível ao cidadão comum e ao não comum também conhecer ao menos 20% delas. Os operadores do direito deveríamos conhecer boa parte das leis, conhecê-las todas seria o ideal, muito embora, pensamos, talvez isso não fosse de absoluta valia, já que o mais importante não é apenas conhecer todas as leis, mas, especialmente, saber aplicá-las dentro de uma lógica jurídica geral. O não conhecimento de toda legislação, no entanto, não constitui falha. O que os operadores do direito precisamos é ter perspicácia suficiente para, tendo consciência de que vivemos em um Estado Democrático de Direito, intuir a existência de regramentos que não sejam notórios, saber onde procurá-los e, após encontrá-los decifrar e estabelecer os seus reflexos dentro de toda a ordem jurídica. A especialização em setores específicos ajuda a dominar as regras próprias de determinados setores (ou ramos) do Direito. Contudo, não garantem efetividade absoluta às atuações que visam consolidar os fundamentos constitucionais ou, ainda, que consagrem, entre tantos outros, os princípios da legalidade, do devido processo legal, do estado ou situação jurídica de inocência, do contraditório e da ampla defesa, princípios estes que, entre outros, servem para definir uma ?filosofia? imposta pela Constituição da República Federativa do Brasil. A efetiva e constante reafirmação, convalidação ou, até mesmo, mutação na interpretação dos princípios constitucionais, inexoravelmente, depende da intensidade da capacitação técnica, específica e interdisciplinar, dos operadores do Direito. Há a necessidade de estabelecer, além do mero conhecimento dos textos legais, outras ações para buscar uma efetividade plena de toda a ordem jurídica. O estudo constante é indispensável. Portanto, identificar a filosofia imposta pela Carta Maior é fundamental.

Esclareçamos melhor essa questão da ?filosofia constitucional?. Necessitamos, pois, definir o que designa a expressão filosofia constitucional. Marilena Chauí(1) ensina que não há uma definição de filosofia, mas várias. Ensina a douta professora da USP que ?uma primeira aproximação nos mostra pelo menos quatro definições gerais do que seria a Filosofia: 1. Visão de Mundo de um povo, de uma civilização ou de uma cultura… 2. Sabedoria de Vida. Nessa definição, a Filosofia é identificada com a atividade de algumas pessoas que pensam sobre a vida moral, dedicando-se à contemplação do mundo e dos outros seres humanos para aprender e ensinar a controlar seus desejos, sentimentos e impulsos e a dirigir a própria vida de modo ético e sábio… 3. Esforço racional para conceber o Universo como uma totalidade ordenada e dotada de sentido. Nessa definição, atribui-se à Filosofia a tarefa de conhecer a realidade inteira, provando que o Universo é uma totalidade, isto é, algo estruturado ou ordenado por relações de causa e efeito, e que essa totalidade é racional, ou seja, possui sentido e finalidade compreensíveis pelo pensamento humano… 4. Fundamentação teórica e crítica dos conhecimentos e das práticas… A atividade filosófica é, portanto, uma análise (das condições e princípios do saber e da ação, isto é, dos conhecimentos, da ciência, da religião, da arte, da moral, da política e da história), uma reflexão (volta do pensamento sobre si mesmo para conhecer-se como capacidade para o conhecimento, a linguagem, o sentimento e a ação) e uma crítica (avaliação racional para discernir entre a verdade e a ilusão, a liberdade e a servidão, investigando as causas e condições das ilusões e dos preconceitos individuais e coletivos, das ilusões e dos enganos das teorias e práticas científicas, políticas e artísticas, dos preconceitos religiosos e sociais, da presença e difusão de formas de irracionalidade contrárias ao exercício do pensamento, da linguagem e da liberdade). Essas três atividades (análise, reflexão e crítica) estão orientadas pela elaboração filosófica de idéias gerais sobre a realidade dos seres humanos. Portanto, para que essas três atividades se realizem, é preciso que a Filosofia se defina como busca do fundamento (princípios, causas e condições) e do sentido (significação e finalidade) da realidade em suas múltiplas forma, indagando o que essas formas de realidade são, como são e por que são, e procurando as causas que as fazem existir, permanecer, mudar e desaparecer?.

Muito embora possa parecer, prima facie, existir uma relativa dificuldade para distinguir, com precisão, os sentidos possíveis do vocábulo filosofia e, muito mais complicado, ainda, estabelecer um conceito para a expressão ?filosofia constitucional?, para nós bastará adotar a quarta definição geral do conceito e, assim passaremos a definir a expressão da seguinte forma: filosofia constitucional é a fundamentação teórica e crítica dos conhecimentos e das práticas estabelecidos pela constituição para a compreensão e interpretação da realidade imposta pela ordem jurídica. Nos é suficiente compreender a expressão filosofia constitucional como sendo uma análise das condições e princípios do saber e da ação jurisdicional, uma reflexão, volta do pensamento expressado pela ordem legal sobre si mesmo, para conhecer-se como capacidade para o conhecimento, a linguagem, o sentimento e a ação a ser desenvolvida pela jurisdição e, por fim, como uma crítica, avaliação racional para discernir entre a verdade e a ilusão, a liberdade e a servidão, investigando as causas e condições das ilusões e dos preconceitos individuais e coletivos, das ilusões e dos enganos das teorias e práticas científicas, políticas e artísticas, dos preconceitos religiosos e sociais, da presença e difusão de formas de irracionalidade contrárias ao exercício do pensamento, da linguagem e da liberdade.

Por evidente que a Constituição encerra no seu bojo uma mensagem. As constituições são sempre entabuladas para que se possa atingir a um determinado objetivo. Essa mensagem estabelece critérios, algumas vezes precisos outras vezes fluídos, mas que de uma forma bastante clara estabelecem um norte a ser seguido. Relativamente às questões de natureza penal, circunscritas ao âmbito do Direito Penal Material e do Direito Penal Formal, o norte magnético, a regra a ser seguida, é dada pela linha que liga o princípio da legalidade ao princípio da presunção de inocência, ou seja, pela união da obrigação de obediência à ordem jurídica como um todo (artigo 1.º, caput, última parte da CF) e a imposição de que até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória ninguém será considerado culpado (artigo 5.º, LVII da CF – princípio constitucional do Estado ou Situação Jurídica de Inocência).

No Brasil o Decreto-Lei n.º 4.657/41 – Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro estabelece, em seu artigo 3.º, que ?ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece?. Em regra, significa dizer, ao menos teoricamente, que todos, indistintamente, devemos conhecer as leis que regem as mais diversas relações no Estado Democrático de Direito brasileiro. Para ?assegurar? que todos possamos conhecer às leis, o artigo 1.º da Lei de Introdução ao Código Civil prescreve que ?salvo disposição em contrário, a lei começa a vigorar em todo o país 45 (quarenta e cinco) dias depois de oficialmente publicada?. Em síntese, a lei deve ser publicada para que todos tomemos conhecimento de seu texto e o sigamos fielmente. Se não as conhecemos o problema é nosso, afinal a publicação coloca à disposição de todos os cidadãos, diligentes ou não, os textos legais. A publicação oficial da lei estabelece a presunção de que todos teremos conhecimento de seu texto, da sua mensagem e que estaremos aptos a cumprir o ordenamento jurídico positivado.

É óbvio que essa presunção não é real, não é efetiva e não garante que conheçamos todas as leis que são publicadas diuturnamente em nosso país. E, ademais, em um Estado como o nosso, em que os desníveis sócio-econômicos e culturais são absurdos, onde há uma imensidão de analfabetos e, ainda, onde uma boa parcela daqueles que sabem juntar letrinhas (e são, estatisticamente, considerados alfabetizados) formam uma outra imensidão de vítimas de uma pedagogia opressora e, conseqüentemente, de analfabetos funcionais, há muitíssimas pessoas incapazes de compreender a mensagem contida em um texto legal, o que evidencia que tal presunção é mera utopia.

Quando é um zé-ninguém quem comete algum ilícito e alega desconhecimento da lei, por mais que se apresentem argumentos éticos e plausíveis para justificar a ausência de dolo (e, até mesmo a ausência de culpa) no descumprimento da norma legal, em geral, os operadores do ?direito? surgem com a máxima ?dura lex sed lex? e, sem nenhum remorso, lhe pespegam uma sanção qualquer. É o legalismo ortodoxo sentencioso. Afinal, ele não é o ?Ninguém?? Não é só o ?Zé?? O ?Zé-Ninguém? ninguém? Tal atitude não causa nenhuma surpresa, afinal, como diria Fernando Pessoa, falando pela alma e pela boca de Álvaro de Campos, no poema Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da Baixa: ?… mesmo que isso aconteça, isso acontece a tanta gente que nem vale a pena ter pena da gente a quem isso acontece…?. Para os ?Zés-ninguéns ? não há perdão, a tolerância é zero, vale a regra estabelecida pelo artigo 3.º da Lei de Introdução ao Código Civil, a máxima de que o desconhecimento da lei não justifica o seu descumprimento. O mesmo procedimento vale para os que não residem na Passárgada de Manoel Bandeira.

Ocorre que, os que vivemos o dia-a-dia da vida forense, eventualmente, nos defrontamos com operadores do direito (juízes, promotores, delegados, advogados, policiais civis e militares etc) que não conhecem a ordem jurídica. Não têm tais operadores do Direito, bem definidos, tampouco mal definidos, os padrões impostos por uma filosofia estabelecida constitucionalmente o que, em razão da função relevante que possuem no seio social, acabam por representar verdadeiro perigo ao Estado Democrático de Direito. Apesar de ocuparem posições relevantes na sociedade, falta-lhes formação propedêutica, falta-lhes formação interdisciplinar, falta-lhes sensibilidade humana. Incorporam, em suas ações, a acepção negativa do vocábulo legalista. Não analisam, não refletem e não estabelecem procedimentos críticos.

Aí verificamos que a regra do artigo 3º do Decreto-Lei n.º 4.657/42 – Lei de Introdução ao Código Civil – não se aplica a tais pessoas, posto que apesar dos erros grosseiros que reiteradamente cometem por não conhecerem as leis, tampouco, os processos de hermenêutica e exegese jurídicas, não sofrem, por falta de coragem dos demais operadores do direito que conhecem a lei, ou, ainda, por lenidade de compadres, qualquer repreensão. Vale lembrar o que Caetano Veloso vaticinou em Podres Poderes: ?Enquanto os homens exercem seus podres poderes, morrer e matar de fone, de raiva ou de sede, são tantas vezes gestos naturais…?.

O problema principal não reside em cometer erros por ignorância (muito embora esse seja um problema bastante sério, especialmente no exercício da atividade jurisdicional). Afinal, o erro é característica inerente ao ser humano. Há que se dizer que, até mesmo para os ?príncipes? operadores do direito, em razão da inflação legislativa da periferia cultural terceiro-mundista, esse é um erro absolutamente escusável. O problema principal reside sim em persistir nos erros em razão de um pernosticismo patológico. Reside na falta de coragem e no medo da reprovação geral do senso comum. O mal maior consiste no fato de que alguns operadores do direito não se dão ao trabalho de conhecer o seu instrumento laboral, qual seja: as normas, as leis e as formas de integrá-las à ordem jurídica geral.

Não são poucas as vezes em que nos defrontamos com demonstrações claras do desconhecimento da lei e das formas de integração dela à ordem jurídica, desconhecimento demonstrado, especialmente, por autoridades constituídas. Quantas vezes não nos defrontamos com o célebre despacho: ?nego atendimento ao requerimento formulado por ausência de previsão legal?.

O princípio da ampla defesa só se torna efetivo quando os operadores do direito manejam o seu instrumento de trabalho com proficiência técnica. Quando, especialmente, os operadores institucionais do direito dão validade e efetividade aos princípios constitucionais, especialmente, aos princípios constitucionais da legalidade, da presunção de inocência, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência.

Assim, os operadores do direito devemos saber que na mesma medida em que ninguém se escusa de cumprir a lei alegando que não a conhece, o desconhecimento da lei por aquele que obrigatoriamente deveria conhecê-la pode representar abuso de autoridade, ficando àquele que por desconhecimento cometer qualquer atentado contra alguém, nos termos da Lei 4.898/65, sujeito às sanções previstas no artigo 6.º do referido diploma legal.

Nota:

(1)    CHAUÍ, Marilena. ?Convite à Filosofia?, Editora Ática, 13.ª Edição, 2003, São Paulo SP, págs. 22 e 23.

Haroldo César Nater é professor de Direito Penal e Processual Penal, advogado, doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais – UMSA.

Voltar ao topo