Disfunção angustiante

O senador José Agripino (DEM-RN) definiu com propriedade os limites a que chegou a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) dos Cartões Corporativos, que com muita justiça deveria ter reivindicado a denominação de CPMI da Tapioca, numa supina homenagem à finíssima iguaria da culinária tradicional brasileira. Reconheceu o parlamentar que além de exercer a liderança partidária no Senado é um articulado porta-voz de picuinhas contra o governo Lula, que a dita comissão ?está nas mãos da Polícia Federal?, dependendo única e exclusivamente do resultado final do trabalho realizado pelo aparelho investigativo do próprio governo. O desabafo de Agripino deu-se no transcorrer da sessão que ouviu anteontem os depoimentos de André Fernandes, assessor do gabinete do senador Alvaro Dias (PSDB-PR), e José Aparecido Nunes Pires, ex-secretário de Controle Interno da Casa Civil da Presidência da República.

Como se sabe, o assessor do senador Alvaro Dias recebeu por e-mail um arquivo contendo o dossiê elaborado por José Aparecido, abrangendo os gastos efetuados com cartões corporativos durante determinado período do governo Fernando Henrique Cardoso. O dossiê, mais tarde batizado pela ministra Dilma Rousseff com o inocente nome de ?banco de dados?, recebeu de Aparecido um solerte complemento, passando a se chamar ?banco de dados seletivo?. A informação foi dada pelo assessor André Fernandes, ao relatar a conversa mantida com Aparecido durante um almoço. Fernandes acrescentou que Aparecido estava nervoso e, aparentemente, indignado, repetindo que a ordem para fazer o dossiê tinha partido de Erenice Guerra, secretária-executiva da Casa Civil. Mais tarde, Aparecido negou e, por sua vez, enfatizou que Fernandes é que se mostrava apavorado. Uma autêntica pantomima.

O festival de mentiras e aleivosias lançado impunemente ao rosto da sociedade, gordo cofre de onde brota o dinheiro para pagar os salários de parlamentares e servidores dos três níveis da administração pública, mereceu a indefectível cereja sobre a porção de creme, quando o antigo funcionário do Palácio do Planalto, com a candura proverbial aos pobres de espírito declinou perante a estupefação nacional que a planilha contendo o dossiê com os gastos de FHC havia sido remetida ?por engano? ao gabinete de Alvaro Dias.

Em resumo, Aparecido disse ter cometido um ?erro humano?, num laivo sintomático de psicanalista diletante, confessando jamais ter lhe passado pelo bestunto armar uma confusão deste tamanho. Também negou no depoimento à CPMI, na condição de indiciado pela Polícia Federal por quebra do sigilo funcional, que a ordem para elaborar o dossiê tivesse partido de Erenice Guerra, passando a incluir no imbróglio um servidor de terceiro escalão, o até então desconhecido Norberto Temóteo Queiroz, por sinal subordinado à secretária-executiva da Casa Civil.

Tem razão o senador José Agripino ao proclamar que a verdade surgirá do relatório final da apuração feita pela Polícia Federal, desautorizando de forma indiscutível a lengalenga até aqui produzida pela CPMI dos Cartões Corporativos, com a sucessão de depoimentos eivados de negativas e mendacidade intelectual, além da intervenção bisonha dos parlamentares governistas, um a um pinçados do baixo clero, talvez por este motivo exponencial merecedores de indulgência plena pela infindável coleção de atentados ao vernáculo e outros embotamentos mais graves.

Com tantas questões sérias e inadiáveis a resolver, como o aprimoramento das normas que regulamentam as relações entre o Estado e a sociedade, colocando-as num padrão de modernidade, é lastimável contemplar o Congresso amordaçado por uma série de passatempos e discussões etéreas sobre o sexo angelical, quando a contrapartida é a escassa produção legislativa apta a corrigir disfunções angustiantes embora elementares, como a falta de habitações populares, escolas, creches, hospitais e mais segurança para garantir a vida e o patrimônio da cidadania.

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