Direito de Estado ou Direito de Juristas?

Antes de tudo o imperativo: sê pessoa e respeita os outros como pessoas! Nesse sentido se crê possa ser compreendida a afirmação de todo direito e de sua indispensabilidade. Numa paráfrase à concludente Hannad Arendt, último e verdadeiramente fundamental direito do homem é afinal o ?direito ao direito?. Logo, o direito só concorre para a epifania da pessoa se o homem logra culturalmente a virtude para esse fundamental direito. Só que, se a decorrência é essa, poderá ser dito: sentido e condições difíceis! De fato. Mas o mais nobre é sempre o mais difícil. Como apelante tarefa para além das palavras (sentido), estas, sobretudo significam algo; porém, a vida, nas suas últimas exigências em que verdadeiramente se é, está para além delas. Mas essa é uma concepção. Uma outra, é acentuada dentre pensadores medievais como Ockam, para o qual o direito não corresponde a esse fundamento intrínseco. É, ao invés, produto de uma potestas. Como assim é, portanto, o legislador quem determina o direito e, também, o antidireito. Essas são duas concepções contrapostas, desde os fatores que lhes são originários e determinantes. A primeira concepção se dispõe a um direito prudencial em que o direito se desvela pela auctoritas do prudens que diferencia o justo do injusto ; a segunda tem o seu ponto angular na potestas a partir da qual podem decorrer todas as normas e, por consectário, a própria configuração da ordem jurídica. Diante disso, pode-se inferir, muito sinteticamente, que a contraposição dessas concepções é a própria contraposição da consideração do direito como expressão cultural à consideração do direito como manifestação política. Com o prevalecimento da segunda concepção, desde a Idade Média, não surpreende que o direito tenha passado a existir apenas no estado e para o estado. Não surpreende que o jurista tenha deixado de ser prudens conditor iuris para se converter num servil aplicador da lei. É deste modo, que, se por um lado, as atividades interpretativas foram formalmente limitadas ao jurista, por outro lado, ocasionou-se a progressão da política como elemento necessário à própria compreensão do que seja direito. É deste modo, também, que, aos poucos, brocardos como in claris cessat interpretatio e dura lex sed lex tiveram constância tal ao ponto de uma proibição da interpretação das leis (v.g., o A.I.R. prussiano, além de tantos outros exemplos possíveis). Destarte, não é nem um pouco incompreensível como actualmente a prudência enquanto prudência dos juristas, que deliberava sobre o justo e o injusto – tenha passado a significar a pletora das atividades dos tribunais. A propósito de se aludir mais, se considerada a circunstância reminiscente de um Estado liberal ou, mesmo, iluminista, também não é incompreensível a concepção da atividade judicial como tão só observância cega pensante da atividade legislativa. Portanto, o juiz é apenas um his master voice. Entretanto, é a II Guerra Mundial um exemplo elucidativo para se colocar em questão a suficiência do Estado, já que evidencia a insuficiência da potestas política para determinar o direito. Ao passo que os Estados alemães que sucederam ao III Reich postularam a existência de um dever de desobediência em relação à ordem jurídica antecedente, portanto, de uma legítima resistência aos preceitos considerados delituosos, os tribunais desses estados não só desconsideraram uma tal alegação como também a alegação de uma atuação sob estado de necessidade. Nesse sentido não só os atos praticados foram considerados ilícitos como as ordens concretas e mesmo os preceitos abstratos. Os julgadores que os aplicaram foram responsabilizados criminalmente. Vê-se, pois, que se uma dada lei é expressão da vontade geral ou, em outros termos, de um corpus político, in abstrato, não poderia se contar com leis injustas, porque ninguém é injusto para consigo próprio. Todavia, quando a lei é colocada em causa, o tribunal é chamado a dizer o que designadamente é direito. Neste ponto, a resposta já não tem condição de ser proporcionada pelo direito de Estado, porque quando o direito de Estado se coloca acima de todos os integrantes da sociedade, já está colocado o temor. A resposta, aqui, tem de ser colocada pelo cultor iuris: o jurista. Portanto, saber se a ordem jurídica é justa ou injusta é uma questão para juristas. A própria lei só pode de algum modo conter direito se sufragada pela communius opinio. Destarte, a impugnação de uma norma ou ordem jurídica pelos juristas retira-lhe toda a possibilidade de se apresentar senão como expressão de uma potestas. Num momento em que se encontra uma verdadeira sorte de mortificação espiritual da Ciência Jurídica, somente uma degenerescência do legalista e uma regeneração do jurista possibilitará uma optmização necessária ao direito com vistas à concretização do desiderato da justiça ao invés de ser serventuário da política. Evidentemente, a problemática não tem só um cariz ad exempla histórico, mas, conduz à interrogação de se uma ordem jurídica pode ser elevada pelo reconhecimento dos juristas como fator de legitimação dela quando o poder político tantas vezes lhes subjuga. Em face de tudo isso, há de se pensar: primeiro sê pessoa!

Kelly Susane Alflen é advogada, professora de Hermenêutica Jurídica e Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Universidade Luterana do Brasil, membro do Instituto Jurídico Interdisciplinar da Universidade do Porto, Portugal, membro da Legal Framework for the Information Society, Rede Lefis Européia Zaragoza, membro da Associação Portuguesa de Direito Intelectual, Lisboa, Portugal, autora de Hermenéutica Jurídica y Concreción Judicial, pela Colômbia (Bogotá) e outros. 

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