Desafios dos prefeitos

Gaudêncio Torquato

Costurar acordos com vereadores para garantir uma gestão sem atropelos, ser proficiente no atendimento das demandas das comunidades, cumprir a Lei de Responsabilidade Fiscal e, ainda por cima, cuidar de projetos políticos com vistas à preservação do poder constituem, convenhamos, desafios de monta para os 5.562 prefeitos que iniciam a gestão. Puxando qualquer um desses quatro fios, o tecido facilmente se esgarça. A concessão política aos vereadores joga a administração nos braços do fisiologismo. Se o prefeito optar por um programa sério, eliminando espaços eleitoreiros, poderá, eventualmente, ficar refém dos humores da Câmara. Cumprir rigorosamente obrigações impostas por lei significa diminuir recursos para investimentos. A razão? Mais da metade dos municípios apresenta dívidas maiores que ativos financeiros. E, se usar a máquina em benefício próprio, o administrador poderá ser denunciado pela oposição e ainda ganhar processo do Ministério Público. Em suma, administrar a res publica municipal implica caminhar sobre o fio da navalha. Na terra do jeitinho, vale o jogo de cintura, sinônimo de passar pela fogueira sem se queimar.

O primeiro grande desafio dos prefeitos é o de calibrar os pneus políticos. A questão apresenta-se no loteamento da administração, com oferta de cargos e espaços para obtenção de apoios. Uma administração ordenada exclusivamente em parâmetros técnicos se torna inviável, razão por que o custo Brasil da ineficiência é altíssimo. Em médios e grandes centros, a racionalidade administrativa se expande, até em razão de pressões sociais e da crítica da imprensa sobre o desempenho dos alcaides. A praga do fisiologismo, porém, é resistente. Na radiografia das casas legislativas, o plano dos jogos pessoais se sobrepõe à missão de legislar e fiscalizar os executivos municipais.

Se o fio político tem mais força que o fio técnico na tessitura administrativa, a fiação de natureza legal também acaba esfarpada. Veja-se a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Exige que o administrador só gaste o previsto. Quem contrair dívidas nos últimos oito meses de mandato e não as pagar integralmente ou reservar o dinheiro para o débito pode pegar de um a quatro anos de prisão. Ora, não se conhece um caso de prisão por descumprimento da LRF. No ano passado, 15% dos prefeitos deixaram de prestar contas ao Tesouro, ignorando exigência legal. Outra vedação: não se pode gastar mais de 54% com pessoal. Mais de 600 municípios, porém, ultrapassam esse índice.

A situação da maioria dos municípios é insustentável. Se, no início dos anos 90s, eles ganhavam quase 20% do total da arrecadação do País, hoje ficam com 14,5%, enquanto os estados levam 24,5% e a União, 61%. Além disso, os municípios jogam 4,52% de receitas próprias em encargos que pertencem à União ou aos estados. A gravidade da situação está a carecer um pacto federativo voltado para equilibrar as três esferas da federação. Não se descarta a hipótese de que a crise municipal interessa, de certa forma, à estratégia federal de manter a prefeitada sob o jugo do presidencialismo imperial. Comer nas mãos do Planalto faz o gosto das cúpulas dirigentes. Compõe a equação estratégica de ampliação de arsenais de poder. Por isso mesmo, o governo parece desdenhar o fenômeno do inchamento das cidades, que se vem alastrando nas últimas duas décadas. Inverteu-se a proporção de pessoas no campo e nas cidades. Os pobres do campo se aproximaram dos mais pobres das periferias metropolitanas e dos ricos urbanos. A pobreza absoluta convive com a opulência, lado a lado, nos bairros e favelas do Morumbi, em São Paulo, da Gávea, no Rio de Janeiro, ou de Boa Viagem, em Recife. Não é à toa que a deterioração dos serviços públicos ocorre em escala geométrica.

As pequenas cidades, que pagam na base do salário mínimo, vêem seus orçamentos estourados por conta do recente aumento. E ainda há os precatórios, os aposentados, a previdência, que fazem o copo transbordar. O que fazer para tapar esse buraco de fundo infinito? Restringir-se ao absolutamente necessário. Essa é a primeira regra. Racionalizar estruturas e processos, dar um choque de contenção de gastos, eleger prioridades da gestão, buscar parcerias para investimentos, principalmente em projetos de cidades médias e grandes, são decisões que descongestionam a gestão. As parcerias público-privadas constituem outra opção. Distorções no sistema tributário municipal também devem ser corrigidas. Todo cuidado é pouco com o marketing exacerbado. O narcisista e o demagogo, o verborrágico e o estilo arrogante formam a equação do ruim com o pior.

Não basta dizer que Deus desceu no espírito do homem. Urge indagar como Deus se manifesta no homem de cada nação. É o que, em 1846, escreveu o filósofo Jules Michelet, do College de France, num belo ensaio sobre O Povo. Pegando carona no aforismo, não basta dizer que as cidades têm prefeitos talentosos e cheios de boa intenção. Urge indagar como os prefeitos entendem e satisfazem as necessidades de seu povo.

Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político.

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