Da morosidade judicial

1. A lentidão da Justiça não é privilégio do Brasil, mas problema universal, que atinge todos os países, desde os mais desenvolvidos até os mais pobres. Estudo publicado em Portugal pelo professor Boaventura de Sousa Santos e Outros, ?Os Tribunais nas Sociedades Contemporâneas?, editora Afrontamento, 2.ª edição, noticia a morosidade em quatro países da Europa, que, em alguns casos, chegam a ganhar do Brasil, em termos de lentidão. Quando juiz auxiliar da Corregedoria (1993/1994), constatei que, em algumas Comarcas do Paraná, a média de duração dos processos cíveis em primeiro grau de jurisdição se apresentava inferior a 12 meses.

2. Vejamos o quadro abaixo, publicado na aludida obra (p. 403), que se refere ao tempo de duração dos processos em primeiro grau de jurisdição:

3. Daí se verifica que apenas na Alemanha a Justiça se revela rápida e eficaz, como todos desejam. Nos demais países pesquisados, embora considerados do primeiro mundo, a Justiça ainda se apresenta muito lenta.

4. Não adianta apenas ficar reclamando da morosidade da Justiça. Há de se indicar as causas das deficiências e apresentar propostas para soluções ou melhora do problema em nossos Tribunais. A recente Reforma do Judiciário (Emenda Constitucional n.º 45/04), dentre as inovações, assegura a todos, no âmbito judicial e administrativo, a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação (art. 5.º, LXXVIII); que o número de juízes será proporcional à efetiva demanda judicial e à respectiva população (art. 93, XIII); a distribuição imediata de todos os processos (art. 93, XV) e a instituição da súmula vinculante (art. 103-A). Agora necessário o Poder Judiciário realizar um esforço para cumprir todas essas garantias constitucionais.

5. Para que se obtenha uma razoável duração do processo civil, imprescindível pesquisar as causas da morosidade e propor soluções adequadas, dentro de nossa realidade. Primeiro, importante encontrar o equilíbrio entre a celeridade e a outorga de ampla defesa, sem violação do devido processo legal.

6. A chamada morosidade legal decorre dos prazos processuais previstos em lei, ou seja, para oferecer contestação, réplica, para o juiz proferir decisões, para os serventuários praticarem atos de sua incumbência, assim como demais auxiliares do juízo, como peritos. Assim, somando-se os prazos previstos em lei, chegaremos ao prazo razoável de duração do processo civil e que se encontra próximo do ideal previsto pela Constituição Federal.

7. As causas da morosidade podem ser internas ou endógenas, ou seja, aquelas decorrentes da atuação do próprio Poder Judiciário e externas ou exógenas, que advêm das partes ou de terceiros.

O professor Boaventura de Sousa Santos indica como causas da morosidade endógena: a) condições de trabalho (instalações e equipamentos); b) a irracionalidade na distribuição de funcionários judiciais; c) a irracionalidade na distribuição de magistrados; d) a impreparação e negligência dos funcionários judiciais; e) a impreparação e negligência dos magistrados judiciais e do Ministério Público; f) volume de trabalho; g) recurso a técnicos fora do Tribunal; h) o cumprimento de cartas precatórias e rogatórias (Op. Cit., pp. 431-441).

8. Condições de trabalho. Estas têm se revelado como causa eficiente da diminuição de produtividade do homem, em qualquer setor produtivo, seja privado ou público. Boas instalações propiciam melhor produtividade no trabalho. Ademais, os equipamentos, máxime de informática, se revelam indispensáveis para uma boa produtividade; sistemas rápidos de pesquisas de doutrina e jurisprudência para juízes e assessores contribuem de maneira significativa para o aumento da produção.

9. Número de funcionários. A Administração deve se encontrar muito atenta quanto ao número de funcionários locados em cada seção. Lembro do caso de um Cartório Criminal de Comarca do interior, quando atuava como Juiz Auxiliar da Corregedoria. Realizamos a inspeção na Comarca e constatamos que o Escrivão quando ia fazer audiência, fechava o Cartório. Vale dizer trabalhava sozinho na Escrivania Criminal, numa Comarca Intermediária. De igual modo, atenção quanto ao excesso de servidores numa seção. Aliás, comenta-se que no Tribunal de Justiça do Paraná existe primeiro e segundo turno de servidores, em algumas seções, por falta de espaço, enquanto que o juiz titular da Capital, com evidente volume de serviço, não possui nenhum auxiliar. Apenas quando o Escrivão paga de seu próprio bolso aqui se trata de Cartórios não oficializados – o juiz mantém um auxiliar, de regra estagiário.

10. Carreira dos serventuários. Fator primordial para o estímulo dos serventuários se refere à criação da carreira, com promoções e remoções, por critérios de antigüidade e merecimento. Com critérios objetivos para aferir o merecimento. Hoje o critério se apresenta apenas de cunho político, o que desestimula os servidores.

11. Escola dos servidores. Indispensável a criação de Escolas dos servidores judiciais em geral, incluindo funcionários dos cartórios não oficializados, serventuários e demais servidores. Não existe um preparo prévio para o exercício da função, o que acarreta dificuldades no seu desempenho e despreparo evidente, com diminuição da produtividade. Exemplo típico diz respeito à contratação pelos Escrivães Cíveis de funcionários sem qualquer curso preparatório para o exercício de funções de tanta responsabilidade. Insta dizer que no Paraná já existe uma Escola patrocinada pela Associação dos Serventuários, o que é digno de encômios.

12. Número de juízes. O mesmo se deve salientar quanto ao número de magistrados nas Comarcas. Deve a Corregedoria acompanhar de muito perto o volume de serviço e antes de acontecer o caos, evitá-lo, ou seja, prevenir, tomar medidas de prevenção para que não se acumulem processos e depois seja necessário regime de exceção, mutirão etc. Outra questão crucial: juiz com baixa produtividade. Necessário a Corregedoria acompanhá-lo mais de perto. Realizar inspeções seguidas, trimestrais e conversar com ele sobre as dificuldades, auxiliá-lo e, em último caso, puni-lo, com as sanções disciplinares previstas em lei, mas o exemplo deve começar de cima, com os membros dos Tribunais.

13. Valorização dos magistrados. De fundamental importância para a melhoria da prestação dos serviços jurisdicionais a melhor preparação e valorização dos magistrados, principalmente de primeiro grau de jurisdição. Com isso, poder-se-ia adotar a vedação ao duplo grau de jurisdição. Juízes mais preparados, a começar pelos concursos sérios e comprometidos em escolher pessoas adequadas para a função de julgar; boa remuneração, o que atrai bons candidatos; critérios objetivos na remoção e promoção por merecimento, o que contribui para o incentivo à carreira.

14. Limite de idade. Tema polêmico se refere à questão do limite de idade para a aposentadoria compulsória. Embora inquestionável que a média de vida dos brasileiros encontra-se em alta, penso ainda que o aumento da idade de aposentadoria para 75 anos de idade contribuirá para a morosidade da justiça. Indiscutível que o ser humano diminui sua capacidade produtiva com o passar dos anos. Importante a renovação do quadro de juízes, máxime nos Tribunais.

15. Desnecessidade de intervenção do Ministério Público. Dispensável a intervenção do Ministério Público como fiscal da lei na área cível e nas ações que envolvem interesse público por ser parte a União, Estado ou Município. Matéria inclusive pacífica no STF e STJ quanto às últimas, bem como quanto à execução fiscal (Súmula 189/STJ). A participação de mais um agente na relação processual contribui para a morosidade.

16. Volume de trabalho. A maior procura do que a oferta de serviços. Necessário pesquisar as causas do excesso de trabalho. De plano, constata-se que o Estado (União, Estado ou Município), se apresenta como o grande litigante. Edita-se uma lei inconstitucional e lá surgem milhares de ações. Exemplo típico e recente na Justiça Estadual é a taxa de iluminação pública, considerada inconstitucional antes do advento da Emenda Constitucional n.º 39/02. Existem milhares de ações de repetição de indébito da aludida taxa. Necessário uma atenção especial do Poder Judiciário sobre tais temas, máxime procurando uniformizar o entendimento, o que contribuirá para solução mais rápida e eficaz dos aludidos casos, bem como evitando o colapso de determinadas comarcas. Indispensável muitas vezes designar um juiz auxiliar; o cartório contratar mais servidores etc.

17. Outra causa do aumento de serviço diz respeito à outorga de direitos ao cidadão. Por exemplo, após o advento do Código de Defesa do Consumidor, evidente o maior número de litígios entre consumidor e fornecedor; ampliaram-se muito as discussões nos contratos bancários, as ações revisionais; outro exemplo versa sobre a indenização por dano moral depois da Constituição Federal de 1988; antes, raras ações de tal tema, que hoje freqüenta os Tribunais em quantidade enorme. O Poder Judiciário precisa preparar-se para receber tal procura de prestação de tutela jurisdicional.

18. Reformas das leis. Ajudam, mas não resolvem em definitivo a questão da morosidade da Justiça. Entendo que algumas reformas mais profundas e de estrutura do Poder Judiciário, se revelam necessárias para diminuir a lentidão da Justiça. Por exemplo, o depósito do valor da condenação para poder recorrer. Outro exemplo: a eliminação do duplo grau de jurisdição, em muitas causas, como locação, execuções de título extrajudicial, ações monitórias, pelo valor da causa, dentre outras hipóteses. A propósito deste tema Oreste Nestor de Souza Laspro, em excelente estudo, enfatiza: ?Trata-se de mecanismo adotado sem maior reflexão, com base mais em aspectos histórico-políticos que jurídicos, no mais das vezes com base em uma alegada tradição. Representa obstáculo à eficiência da organização judiciária, na medida em que não se pode demonstrar, cientificamente, que atinja de modo eficaz a única meta para ser mantido, qual seja, a de que a decisão de segundo grau é ?melhor? que a de primeiro.? (Duplo grau de jurisdição no direito processual civil, RT, 1995, p. 117).

19. Ética. Algo que exige melhor estudo nas Universidades concerne à ética do advogado. O advogado é indispensável à administração da Justiça (CF, art. 133). Para tanto, sua atuação com ética se afigura como de primordial relevância para contribuir no combate à morosidade da Justiça. Nem sempre vemos isso nos Tribunais: advogados que ingressam com aventuras judiciais, com recursos protelatórios, retiram processos com carga e não devolvem, ações fraudulentas. O advogado deve ter responsabilidade ao ingressar em juízo, não formulando pretensão destituída de qualquer fundamento. Como ensina Maurice Garçon, em sua clássica obra ?O advogado e a moral?, a sinceridade é um dever que gera autoridade. A magistratura não pode confiar no advogado desde que suspeite que ele poderá enganá-la.? (Armênio Amado, 2.ª edição, p. 40).

20. Especialização dos Tribunais. Cuida-se de fator preponderante para combater a morosidade. Quanto mais específica a especialização, maior o rendimento do juiz. Exemplo disso tínhamos até pouco tempo, em nosso Tribunal de Alçada do Paraná, a então 4.ª Câmara Cível, com competência exclusiva para julgar conflitos sobre alienação fiduciária e leasing, destacava-se pela alta produtividade.

21. Tribunais gigantes. Por exemplo, em São Paulo consta que o número de desembargadores atinge cerca de 360, enquanto os de juízes de direito substituto em segundo grau de jurisdição chega a 88, vale dizer, cuida-se de Tribunal com cerca de 450 julgadores; imagine-se esse número daqui a 20 ou 50 anos.

Com a valorização da magistratura de primeiro grau de jurisdição, se poderia evitar o crescimento exagerado dos Tribunais, o que também provoca morosidade na justiça e ainda despendem vultusas quantias no orçamento do Poder Judiciário. Aliás, cada desembargador, com no mínimo dois assessores, mais cargos auxiliares de gabinete, além de motorista e veículo à sua disposição, em alguns Estados, não combinam muito com a seriedade e o exemplo que deve o Poder Judiciário dar aos Poderes Executivo e Legislativo.

22. Órgão Especial. A redução do número de julgadores, no Órgão Especial, poderia ser para 11 ou 15, exceto São Paulo, com competência exclusiva para julgamento das ações de competência do aludido órgão, contribuiria para agilização dos serviços nos Tribunais Estaduais, máxime com elevado número de desembargadores. Perde-se muito tempo com um Órgão Especial composto por 25 magistrados, discutindo matéria administrativa e contenciosa. Um grupo menor apresentaria melhor produtividade e soluções mais rápidas.

23. Juízes em funções administrativas. Juízes designados para funções administrativas se revelam uma necessidade, por um lado, mas um contratempo, por outro, porque prejudica a atividade jurisdicional. Varas ficam sem titulares, diminui o número de substitutos. A melhor solução que se apresenta seria a contratação de juízes aposentados, em cargos de confiança, para o exercício de tais funções.

24. Rotatividade dos juízes. Apresenta-se como uma das causas da morosidade judicial. Aqui, em nosso Estado, em época recente, chegou a ser exagerada a rotatividade, culminando com o exemplo de que alguns juízes, com apenas 11 meses de carreira, chegaram até a promoção de Juiz da Capital.

25. Comarcas vagas. A falta ou demora no preenchimento de cargos de juízes se revela como causa que contribui de maneira significativa para a morosidade judicial. Importante que os cargos sejam preenchidos com brevidade. A Administração deve prever com antecipação o problema. Veja-se o recente exemplo, em nosso Estado. Criaram-se inúmeros Juizados Especiais e se instalaram de maneira precipitada, sem previsão de realização de concurso prévio e que candidatos aprovados estivessem aguardando a nomeação. Aconteceu o caos. Inúmeras Comarcas sem juízes, com evidente prejuízo na atividade jurisdicional.

26. Ações de vulto. Aspecto importante e que merece atenção das Corregedorias concerne às chamadas ações de vulto, de grande repercussão, inclusive social. Exemplos são ações criminais contra grande número de réus ou de muita evidência pelo crime praticado. Exigem muito tempo do juiz e serventuários. Necessário um apoio extraordinário dos Tribunais para tais questões. Recordo que realizamos inspeção em Comarca, onde tramitava ação criminal de notoriedade e o juiz se encontrava absorvido somente por aquela demanda, não podendo cuidar das demais atribuições.

27. Alunos destaques. A celebração de convênios pelos Tribunais com Universidades e a contratação, para cargos de confiança de alunos, que se destacarem por suas notas, assiduidade e interesse até de seguir a carreira da magistratura, poderia contribuir para melhorar a qualidade dos serviços judiciários. Mais do que a quantidade de servidores, importante a qualidade.

28. Efeito de transferência da morosidade. Importante destacar que, para equacionar uma determinada causa de morosidade, impõe-se verificar se os processos não paralisarão por outro fator. Por exemplo, se numa Comarca existem processos em demasia para sentença e realiza-se mutirão com outros juízes para colocar em dia, indispensável verificar se o Cartório possui número suficiente e adequado de funcionários para dar cumprimento ao elevado número de sentenças. É o que o professor Boaventura de Souza Santos denomina de efeito de transferência de morosidade de uma causa para outra (Op. Cit., p. 447). Então necessário uma coordenação das Corregedorias para que a morosidade seja extirpada.

28. Conclusões: Em síntese, sugerimos, como medidas para melhorar a prestação da tutela jurisdicional no Brasil:

a) propiciar boas condições de trabalho, com destaque para informatização com qualidade;

b) número de servidores e magistrados adequados à demanda (procura) dos serviços judiciais;

c) escola para os servidores judiciais;

d) instituição de carreira para os servidores judiciais, como meio de incentivo à produtividade e qualidade dos serviços;

e) valorização da magistratura, com a realização de concursos sérios e adequados para a escolha dos candidatos; boa remuneração e critérios objetivos de remoção e promoção por merecimento;

f) uniformização de entendimentos em matérias repetidas;

g) reforma das leis, em especial a instituição da vedação do duplo grau de jurisdição para algumas espécies de ações e depósito do valor da condenação para recorrer;

h) trabalhar muito com a ética do advogado desde a Universidade;

i) desnecessidade de intervenção do Ministério Público, de regra geral, na área cível;

j) manutenção do limite de idade de 70 anos para a aposentadoria compulsória;

k) especialização dos juízos e tribunais por matérias;

l) não aumento do número de membros nos Tribunais;

m) redução do número de membros no Órgão Especial dos Tribunais;

n) contratação de juízes aposentados para funções administrativas;

o) combater a rotatividade dos juízes nas Comarcas;

p) não deixar Comarcas ou Varas sem juízes; planejamento antes da criação de cargos;

q) atenção para ações de vulto que exijam muito tempo dos juízes e serventuários;

r) contratação de alunos destaques das Universidades para cargos de confiança;

s) evitar o chamado efeito transferência da morosidade.

Lauro Laertes de Oliveira é desembargador do Tribunal de Justiça do Paraná.

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