Considerações sobre os Juizados Especiais Cíveis

1. A pequena complexidade da causa e a competência dos Juizados Especiais Cíveis:

Editada em atenção à premente necessidade de revitalização do sistema processual tradicionalmente voltado à tutela dos interesses particulares e atendendo, até então, a faixa mais abonada da população, a denominada Lei das Pequenas Causas (Lei n.º 7.244, de 7.11.1984) representou formidável instrumento de acesso efetivo à jurisdição e de agilização dos processos que cabiam na esfera de competência por ela traçada.(1)

Nascida na esteira das importantes e revolucionárias conquistas obtidas com aquela lei e sob o influxo da nova ordem constitucional estabelecida pela Carta de 1988, a Lei dos Juizados Especiais é destinada, de acordo com o comando do artigo 98, inciso I, da Constituição Federal, à conciliação, julgamento e execução de causas cíveis de menor complexidade, assim qualificadas aquelas arroladas nos quatro incisos de seu artigo 3.º.

Extrai-se, do elenco legal, que a determinação da competência dos Juizados Especiais Cíveis é realizada com base em critérios econômicos (inc. I) e materiais (inc. II a IV), subordinados, todos eles, à exigência constitucional de pequena complexidade da causa. Importante lembrar, ademais, que esses critérios quantitativo e qualitativos (2) mantêm, entre si, total autonomia, pouco importando a matéria para a definição da competência pelo valor da causa, e vice-versa.(3)

A competência fixada em consideração ao critério econômico está indissoluvelmente associado à exigência constitucional de pequena complexidade da causa; e como tal exigência vem estabelecida no ápice da hierarquia normativa, ela há de ter precedência, na atividade interpretativa, sobre qualquer outra previsão legal. Vale dizer, mesmo causas de valor econômico inferior ao estabelecido por lei estarão excluídas do âmbito de competência do Juizado Especial Cível(4), se e quando revelarem de plano (ou vierem a revelar, no curso do processo) maior complexidade fática(5) sendo irrelevante para tal fim, todavia, a complexidade jurídica, na medida em que iura novit curia.(6) Aliás, é em consideração à exigência de pequena complexidade da causa que a lei específica estabelece, em seu artigo 2.º, as balizas que nortearão o juiz na direção do processo. Afinal, grande complexidade fática, a exigir a produção de prova técnica formal, não se compatibiliza com a oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade previstas para as causas da competência dos Juizados Especiais.(7)

2. Os meios de provas admissíveis nos processos dos Juizados Especiais Cíveis:

O artigo 5.º da lei específica atribui ao juiz ampla liberdade de iniciativa e de condução da instrução probatória, podendo admitir, para tanto, ?todos os meios de prova moralmente legítimos, ainda que não especificados em lei…? (art. 32).

Essa liberdade, necessária para o exato cumprimento dos escopos da Lei dos Juizados Especiais(8), autoriza-o a inquirir, em audiência, técnicos de sua confiança, realizar inspeção em pessoas ou coisas, ou determinar que o faça pessoa de sua confiança (art. 35).

Cumpre-lhe, no entanto, estar sempre atento ao binômio simplicidade-celeridade que deve presidir o curso do processo, limitando ou excluindo provas que considerar excessivas, impertinentes ou protelatórias (art. 33) e, principalmente, impedindo peremptoriamente a tentativa de produção de prova técnica formal, cujo procedimento destoa, por sua complexidade e custo elevados, da matriz constitucional de pequena complexidade da causa.

Destarte, constatando o juiz a existência de questão fática complexa, imune à resolução por meio de simples inquirição, na audiência, de técnico de sua confiança (art. 35), deverá extinguir o processo, sem julgamento do mérito, ex vi do artigo 51, inciso II, da lei em testilha.

Nesse sentido a orientação predominante em sede jurisprudencial:

?O sistema dos Juizados Especiais Cíveis é incompatível com a produção de provas complexas, haja vista sua celeridade, simplicidade e informalismo, expressamente previstos na Lei n.º 9.099/95?. (2.º Colégio Recursal dos Juizados Especiais Cíveis da Comarca da Capital, rel. Juiz Soares Levada, julg. 10.4.1997, in Revista dos Juizados Especiais, ano 2, vol. 4, abr/jun, 1997, p. 187 a 189).

?Juizado Especial de Pequenas Causas – Complexidade da causa Extinção do processo sem julgamento do mérito Recurso provido para esse fim.? (2.º Colégio Recursal dos Juizados Especiais Cíveis da Comarca da Capital, rel. Juiz Plínio Andrade, julg. 29.7.1998, in Revista dos Juizados Especiais, ano 3, vol. 10, out/dez 1998, p. 163 a 168).

?Mostra-se complexa e, portanto, refoge à competência do Juizado Especial Cível, matéria que exige a produção de perícia técnica, para determinar a causa em que se baseia o pedido inicial de ressarcimento de danos?. (Processo de apelação cível no Juizado Especial 20010110737238ACJ, 2.ª Turma Recursal dos Juizados Cíveis e Criminais do Distrito Federal, rel. Benito Augusto Tiezzi, julg. 8.5.2002, DJDF 18.6.2002, p. 135 – in Jurisprudência Informatizada Saraiva 33).

?Admite-se a prova técnica nos Juizados Especiais, através de simples esclarecimentos do experto, em audiência. Quando para a solução da controvérsia for necessária uma perícia, nos moldes habituais do Código de Processo Civil, a causa deverá ser considerada complexa e encerrada no âmbito do Juizado Especial, sem julgamento do mérito, com a remessa das partes à Justiça Comum? (JEC, Apelação 100/96, 1.ª Turma Recursal, Belo Horizonte, rel. Marine da Costa in Informa Jurídico 25).

?O art. 35 caput e seu parágrafo único, da Lei Federal n.º 9.099 de 26.09.1995, em consonância com o princípio geral da oralidade do art. 2.º do mesmo estatuto, conduzem à conclusão de que no sistema dos juizados especiais, a prova técnica poderá ser produzida, desde que o seja apenas oralmente. A realização da perícia médica, que implique na produção de prova fora da audiência, com a apresentação de laudo escrito, enseja o prolongamento da instrução, em dessintonia com os princípios da simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, todos norteadores do sistema especial.? (TJSC – CC 97.000813-9 2.ª C.C. – rel. Des. Nelson Schaefer Martins – julg. 10.4.97).

?Julga-se extinto o processo, com fulcro no art. 51, II, da lei de regência, em que a causa apresenta questão cuja solução exija o exame de questões de alta indagação, realização de prova pericial e o procedimento estreito no juizado não permite um desenlace satisfatório. 3. Sentença cassada para extinguir-se o processo com fulcro no art. 51, II, da Lei n.º 9099/95.? (JEC, Apelação, proc. 20010110058562, acórdão 144662, 2.ª Turma Recursal, Distrito Federal, rel. João Egmont Leôncio Lopes, julg. 18.09.01, pub. 16.10.2001, p. 191 in Informa Jurídico 25)

No mesmo sentido posiciona-se a doutrina.(9)

3. O ônus da prova nos processos dos Juizados Especiais Cíveis:

Mesmo no sistema dos Juizados Especiais Cíveis, que confere ao juiz, como já dito, ampla liberdade de iniciativa e de condução da instrução probatória, remanesce, para as partes, o encargo probatório, ?segundo as regras do art. 333 do Código de Processo Civil (fatos constitutivos, pelo autor; demais, pelo réu), e prepondera mesmo, como é natural, o princípio dispositivo cabendo às partes, em princípio, a iniciativa de propor os meios de prova de que disponham?.(10)

Realmente, é à luz do caso concreto que poderá o juiz, destinatário final da prova, valorar o conjunto probatório e proceder, na lição de Barbosa Moreira(11), à distribuição dos riscos derivados do ônus da prova.

Como esclarece o consagrado processualista, do ponto de vista subjetivo, ou formal, o exame do ônus da prova implica, em última análise, o exame mesmo da necessidade, existente para a parte que busca um provimento favorável, de pesar os meios pelos quais pretende persuadir o juiz e, depois, de esforçar-se para que tais meios sejam efetivamente utilizados na instrução.

Objetivamente considerado, o ônus da prova representa verdadeira distribuição de riscos, ou seja, tendo em vista que o conjunto probatório possa ser lacunoso ou obscuro (e considerando que o juiz, apesar disso, deverá julgar), a lei traça critérios destinados a informar, de acordo com o caso, qual dos litigantes deverá suportar os riscos derivados dessas lacunas ou obscuridades, ?arcando com as conseqüências desfavoráveis de não haver provado o fato que lhe aproveitava?. No momento em que deva proferir o julgamento, o juiz, verificando que o conjunto probatório é incompleto ou insatisfatório, deverá impor ao responsável as conseqüências desfavoráveis, até porque assumiu tal risco. No fundo, portanto, a distribuição do ônus objetivo da prova corresponde a verdadeira regra de julgamento, sempre que o juiz, diante da existência de lacunas ou obscuridades do conjunto probatório, se veja, ainda assim, obrigado a motivar a sua decisão. Ou, caso se prefira, a aplicação das normas sobre distribuição do ônus da prova constitui, como elemento da motivação do julgamento, um ?sucedâneo da prova faltante?.(12)

Então, apesar de a Lei dos Juizados Especiais estabelecer ?um realista equilíbrio entre o princípio inquisitório e o dispositivo?(13), remanesce para as partes o encargo probatório, arcando cada qual, objetivamente, com os riscos da não produção.

Notas

(1)     Cfr. Cândido Dinamarco, Manual dos Juizados Cíveis, 2.ª ed., São Paulo, Malheiros Editores, 2001, n.º 1, p. 21.

(2)     Designações adotadas por Cândido Dinamarco, ob. cit., n.º 13, p. 54.

(3)     Nesse sentido, por todos, Cândido Dinamarco, ob. cit., n.º 13, p. 55 e Fátima Nancy Andrighi e Sidnei Beneti, Juizados Especiais Cíveis e Criminais, Belo Horizonte, Del Rey, 1996.

(4)     Na lição de Joel Dias Figueira Júnior e Mauricio Antonio Ribeiro Lopes, ?não há que se confundir pequeno valor com reduzida complexidade do litígio, seja em termos fáticos ou jurídicos. Nada obsta que estejamos diante de uma ação que não ultrapasse quarenta salários mínimos mas que, em contrapartida, apresenta questões jurídicas de alta indagação, não raras vezes acrescida da necessidade de produção de intricada produção de prova pericial.? in Comentários à Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, Editora RT, São Paulo, 1995, p. 58/59. No mesmo sentido manifesta-se Ricardo Cunha Chimenti: ?As questões de direito, por mais intrincadas e difíceis que sejam, podem ser resolvidas dentro do Sistema dos Juizados Especiais, o qual é sempre coordenado por um juiz togado. (…) Por outro lado, quando a solução do litígio envolve questões de fato que realmente exijam a realização de intrincada prova, após a tentativa de conciliação o processo deve ser extinto e as partes encaminhadas para a Justiça ordinária. É a real complexidade probatória que afasta a competência dos Juizados Especiais.? (in Teoria e Prática dos Juizados Especiais Cíveis, 4.ª ed., São Paulo, Editora Saraiva, 2002, n.º 3.6, p. 60/61).

(5)     Equivocado, portanto, o entendimento de que, uma ?vez enquadrada a competência do Juizado Especial a uma das hipóteses previstas no art. 3.º da Lei 9.099/95 é irrelevante a complexidade da causa para a fixação de sua competência?. (TAPR, Conflito de competência 0198228-9, Ponta Grossa, 8.ª Câmara Integral, rel. Juiz Paulo Roberto Vasconcelos, julg. 25.03.2003, pub. 4.4.2003) – in Jurisprudência Informatizada Saraiva (33).

(6)     Daí a total pertinência do Enunciado 15 do I Encontro de Juízes dos Juizados Especiais Cíveis da Capital e da Grande São Paulo: ?Causas de menor complexidade são aquelas previstas no art. 3.º n.º 9.099/95, e que não exijam prova técnica de intensa investigação. A alta complexidade jurídica da questão, por si só, não afasta a competência dos Juizados Especiais.?.

(7)    Conforme já decidiu, ?os princípios da simplicidade, informalidade e economia processuais, são incompatíveis com causas de maior complexidade, independentemente de seu valor e esta complexidade, que não é de ordem subjetiva, será analisada pelo julgador caso a caso.? (JEC, Apelação, proc. 20010110058562, acórdão 144662, 2.ª Turma Recursal do JEC., Distrito Federal, rel. João Egmont Leôncio Lopes, julg. 18.09.01, pub. 16.10.01, p. 191 in Informa Jurídico 25)

(8)     Como esclarece Cândido Dinamarco, referindo-se à prova nos Juizados Especiais, ?as peculiaridades desse processo, voltado às camadas menos aquinhoadas e portanto menos preparadas da população e ainda sem a exigência do patrocínio técnico? (…) ampliam ?a responsabilidade do juiz na perquirição da verdade dos fatos. Seu compromisso com a justiça e portanto com a verdade obriga-o a uma participação mais acurada dos elementos de informação, cabendo-lhe extrair, exaustivamente, tudo que cada meio de prova seja hábil a lhe fornecer.? Ob.cit, n. 77, p. 152.

(9)    Por todos, Joel Dias Figueira Júnior e Mauricio Antonio Ribeiro Lopes, ob. cit., p. 59; Ricardo Cunha Chimenti, ob. cit., n.º 3.6, p. 61 e Demócrito Ramos Reinaldo Filho, Juizados Especiais Cíveis, São Paulo, Saraiva, 2.ª ed., 1999, p. 35/36.

(10)    Cfr. Cândido Dinamarco, ob. cit., n.º 77, p. 151 e 152.

(11)    Julgamento e ônus da prova, in Temas de direito processual, segunda série, pp. 73 a 82.

(12)    Idem, ibidem.

(13)    Cfr. Cândido Dinamarco, ob. cit., n.º 77, p. 152.

Antonio Carlos Marcato é professor do Departamento de Processo da Faculdade de Direito da USP. Coordenador acadêmico e professor do CPC-Marcato.

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