Considerações sobre o Estatuto do Desarmamento

A Lei n.º 10.826/03, também conhecida como ?Estatuto do Desarmamento?, foi publicada em 22.12.2003 e regulamentada pelo Decreto n.º 5.123, de 01.07.2004. Ela nasceu no Ministério da Justiça, seguindo o Plano Nacional de Segurança Pública elaborado pelo Instituto da Cidadania, tramitou por uma Comissão Mista do Congresso Nacional, sendo mantido nas duas Casas do Congresso o espírito evocado pelo Executivo, entrando, por fim em vigor a contar da data de 23.12.03.

Seguindo a política traçada pelo mencionado Plano, trouxe inovações quanto ao registro, posse e comercialização de armas e munições.

O registro de uma arma de fogo passou a ser concentrado nas mãos de órgãos públicos federais, ficando a cargo da Polícia Federal Sinarm – o registro das armas de uso restrito, e ao Comando do Exército Sigma as de uso proibido ou restrito.

Diferencia-se registro de porte de arma. O registro é o documento da arma, cadastrada junto ao Sinarm (Polícia Federal) ou ao Sigma (Comando do Exército) conforme a classificação dada ao seu uso; o porte, por sua vez, é a simples autorização ao proprietário para andar armado.

Não há um cadastro único de controle de armas. Porém, ao Estado é conferido o direito de ter conhecimento de toda a vida do artefato.

A comercialização de armas de fogo e munição segue algumas regras, dentre as quais as previstas no próprio Estatuto, em seu artigo 4.º, bem como no Decreto n.º 3.665/2000 (R-105), que regulamenta a fiscalização de produtos controlados. Naquela ordem legal, temos, a título exemplificativo, normas indicativas à aquisição de munição, permitida se corresponder à arma adquirida e na quantidade estabelecida no regulamento da Lei 10.826/03. Outro ponto curioso, firma que a comercialização de armas, acessórios e munições entre pessoas físicas somente é possível se autorizada pelo Sinarm da Polícia Federal. Pelo Decreto n.º 3.665/2000 (R-105) tem-se a classificação quanto ao uso (permitido, restrito ou proibido), influenciando tal indicação no enquadramento típico-penal de conduta eventualmente praticada pelo agente. Ressalte-se ainda que, por norma expressa no novo Estatuto (art. 28) somente o civil maior de 25 anos pode adquirir arma de fogo de uso permitido, e, em menor idade, se integrante dos quadros policiais ou das Forças Armadas, nos termos do artigo 6.º.

O principal embate doutrinário e jurisprudencial que atualmente retrata o Estatuto refere-se à vigência ou não dos artigos incriminadores (12, 14 e 16) face o conteúdo emblemático exposto nos artigos 30 a 32, gerando posições dissonantes em meio às mais diversas instituições e tribunais.

Corrente mais benevolente prima pela ?abolitio criminis?, ainda que temporária, dos artigos 12, 14 e 16 (onde perfeitamente se enquadram os crimes de posse e porte de arma de fogo de uso permitido, proibido ou restrito, como as de calibre 38, pistolas 9 mm, fuzis A-R 15, metralhadoras, armas com marca, numeração ou sinal de identificação raspado, suprimido ou adulterado, posse o porte de munições de todo e qualquer calibre, mesmo qualquer artilharia antiaérea, dentre outros). Não há, portanto, crime desde que praticado no interregno permissivo de 180 (cento e oitenta) dias, a contar da publicação da lei (22.12.03), já elastecido tal prazo até o dia 23 de outubro de 2005 por força de Medida Provisória (n.º 253, de 22 de junho de 2005 (em vigor). Assim, em qualquer das três situações além da antinomia, faculta-se ao agente dirigir-se até a Polícia Federal e proceder a entrega do artefato, mediante posterior indenização variante esta de R$ 100,00 (cem reais) a R$ 300,00 (trezentos reais), com posterior destinação e destruição pelo Comando do Exército. Em assim não procedendo, desejando o porte, pode regularizar a situação, desde que comprove ao mesmo órgão policial a origem lícita da arma/munição mediante nota fiscal de compra ou venda, e, na sua falta, pode se valer de todos os meios de prova em direito admitidos, nos termos do artigo 30 da Lei. Para o trânsito com a arma e a munição do local de trabalho ou residência, primam alguns pelo uso de autorização de tráfego expedida pela própria Polícia Federal, e, segundo outros, a dispensam, sob a alegação de que o que vale é a intenção do agente em se desfazer do artefato.

Concluem estes partidários, que a norma do artigo 32 é de natureza permissiva, devendo, portanto, ser interpretada da forma mais ampla o possível, não cabendo ao aplicador restringir o que a lei não quis, vez que os artigos 30 a 32 não firmam se os artefatos são de uso permitido, proibido ou restrito, gerando, como já comentado, atipicidade temporária da conduta, ou mera ausência de antijuridicidade, esta na modalidade de exercício regular de direito. Para alguns mais exaltados, há extinção da punibilidade de todos aqueles que estão sendo processados ou tenham sido condenados por porte ilegal de arma de fogo, ainda que nos termos da Lei 9.437/97, negando vigência, com tal raciocínio ao artigo 3.º do Código Penal, que dispõe sobre lei excepcional ou temporária sob a alegação de que tal dispositivo não pode ser aplicado em caso de norma permissiva temporária mais benéfica, incidindo-se sim, o princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica nos termos do artigo 5.º, inciso XL da Constituição Federal.

Para uma outra corrente, o entendimento é muito mais meticuloso e interpretativo, não se atendo simplesmente a uma leitura literal da letra da lei, a exemplo da primeira corrente, buscando no âmago da norma o fiel querer do legislador.

Os artigos 30 a 32 da Lei ditam regras aos possuidores e proprietários de armas de fogo não registradas, a fim destes, num prazo que se finda em 23 de outubro de 2005, sob pena de responsabilidade penal, solicitar o registro do artefato, desde que comprovem sua licitude ou o entreguem à Polícia Federal (não mais às Civis estaduais e muito menos às Militares), apresentando nota fiscal de compra ou comprovem a origem lícita da posse por todos os meios de prova em direito admitidos, nos termos do artigo 30 da Lei.

Bem ao certo, o legislador não diferenciou se a entrega autorizada refere-se às armas de uso permitido, restrito ou proibido, não se atendo a tal peculiaridade nem no Regulamento da lei e, nem perante qualquer Resolução originária da Polícia Federal. Mas nem por isso, há atipicidade (ainda que temporária), exclusão da antijuridicidade da conduta ou sua descriminalização.

Em leitura do artigo 27 do Estatuto, extrai-se que só ao Comando do Exército cumpre ?autorizar, excepcionalmente, a aquisição de armas de fogo de uso restrito?, de onde se conclui que ao cidadão comum não é conferida a prerrogativa de, por exemplo, adquirir, portar ou possuir, arma deste calibre. Assim, não é possível, nestas condições, a entrega de arma ou munição à Polícia Federal sendo a esta legítima a recusa de seu recebimento, primeiro por não ser o órgão responsável para conceder a autorização de venda, impedindo-a de o ser destinatária final (neste caso, cumpre, como dito, ao Comando do Exército) e, segundo, por que arma deste porte, nas mãos de civil amolda-se perfeitamente a conduta prevista no artigo 180 do Código Penal crime de receptação – dado em vista que o delito do artigo 17 do Estatuto exige como sujeito ativo o exercício de atividade comercial ou industrial de armas ou munições.

Assim, segundo esta corrente, está em plena vigência o artigo 16 da lei, por tratar de arma de fogo, acessório ou munição de uso proibido ou restrito. Descabe, portanto, qualquer alegação já aventada por alguns de que é este artigo exemplo de norma penal em branco, aguardando regulamentação. Seu preceito está totalmente completo, há regras neste sentido (R-105) em pleno vigor, arrolando quais artefatos o são deste calibre, bem como define os seus destinatários, os quais, bem ao certo, não são o particular, o qualquer do povo. Pensamento diverso, coaduna e permite impunidade a crime com considerável gravidade.

Em contrapartida, a análise dos artigos 12 e 14 da Lei é muito mais apurada. Ambos tratam de arma de fogo de uso permitido. O artigo 12 tem em seu preceito os verbos ?possuir? e ?manter? e o artigo 14 (tipo misto alternativo por excelência com não menos que 13 condutas típicas), serve-se, por exemplo, dos verbos ?portar?, ?deter?, ?adquirir?. A diferenciação entre ambos é a de que no artigo 12, a posse ou a manutenção é no interior de sua residência ou local de trabalho, enquanto que no artigo 14 o é em qualquer local diverso.

Entendem os defensores desta linha que, em ambas hipóteses, o cidadão está amparado pela norma prevista no artigo 30/32 da Lei, tendo como data limite o dia 23 de outubro de 2005 para proceder na entrega da arma ou munição à Polícia Federal. No entanto, tal conclusão é alcançada não via interpretação literal destes artigos, mas sim pelo fato de que ao possuir ou portar arma de uso permitido há autorização prevista na própria lei permitindo ao particular, em querendo, regularizar sua situação perante a Autoridade Policial Federal ou dela se desfazer.

Denota-se, assim, uma aplicação prática da teoria da imputação objetiva, pois o indivíduo não criou ou incrementou risco proibido relevante, presumindo boa-fé, viabilizando, pela contribuição ao desarmamento, posterior indenização.

Tenha-se por fim a observação que, em qualquer delito, recomenda a lei em seu artigo 25, a elaboração de laudo pericial, a cargo de Polícia Técnica, antes do envio dos autos ao Juízo competente, entendendo-se, portanto, concomitante à lavratura do auto de prisão em flagrante ou do termo circunstanciado. As armas e munições que não mais interessem aos autos, serão remetidas pela Polícia Federal ao Comando do Exército para que este proceda em sua destruição.

Estas, as considerações que se faz, por ora, sobre o Estatuto do Desarmamento.

Mara Francine Levin David é assessora Jurídica no Ministério Público do Estado do Paraná.

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