Cenas de jornalismo explícito

Desde Hipólito da Costa, editor do Correio Braziliense, primeiro jornal a circular no Brasil para fazer a campanha da independência, impresso em Londres (imaginem o tempo que demorava para chegar ao Rio de Janeiro), há bons motivos para sentir orgulho dos jornalistas patrícios. Evidentemente, refiro-me só àqueles que são dignos de receber a menção. Espero que o leitor concorde.

A escola do bom jornalismo teve alunos aplicados que além do trabalho exemplar, deixaram o nome inscrito nos compêndios que encerram a história da profissão entre nós. Vale lembrar personagens da estirpe de Mário Rodrigues, Antonio Calado, Cláudio Abramo, Alberto Dines, Joel Silveira e Jânio de Freitas, editores e/ou repórteres, que brilharam nas principais redações do eixo Rio-S. Paulo, outrossim, dirigidas por gente nem tão virtuosa como seria de esperar. Mas esse é outro assunto.

Da geração de profissionais que está chegando aos 30 anos de trabalho (ou já passou dessa marca), um grupo deve obrigatoriamente figurar em qualquer registro profissional que se fizer do jornalismo em nosso país. Aliás, o jornalista Geraldinho Carneiro, na época repórter do Jornal de Brasília, fez isso com louvor no interessante livro Complexo de Clark Kent – São super-homens os jornalistas? (Summus, SP, 1991). O autor entrevistou gente do primeiro time, como Augusto Nunes, Marcos Sá Corrêa, Mino Carta, Boris Casoy, Armando Nogueira, Joelmir Beting, Sérgio Augusto, além do professor José Marques de Melo, da Universidade de São Paulo, para deixar traçado um imenso painel do jornalismo contemporâneo.

Todos esses profissionais estão na ativa, espero por muitos anos ainda, e sua trajetória certamente foi e continuará sendo exemplo para os novos figurantes do agitado mundo que muitos comparam a um circo, e outros, quem sabe com mais acerto, a um hospício.

De passagem, lembro nota dessa semana informando que uma universidade privada desenvolve projeto, sob coordenação de Alexandre Castro, cuja finalidade é documentar o pensamento de figuras relevantes do jornalismo paranaense, com o que passaremos a dispor de uma memória atualmente restrita à própria cachola de alguns que persistem nessa faina.

Pondo em miúdos o que entende por complexo de Clark Kent, misto de repórter e Superman, bem como as principais implicações disso Carneiro diz: “O poder da palavra, da imagem, da seleção e interpretação dos fatos e de sua multiplicação, cria a ilusão do repórter super-homem como, a começar pela tradicional história em quadrinhos, foi tantas vezes utilizada pela ficção – do cinema às novelas de tevê, passando pela literatura e pelo teatro”. É oportuno lembrar que a historieta foi criada naquele intervalo de tempo pós-depressão econômica e início da Segunda Guerra Mundial, exatamente quando a América estava “sedenta por novos mitos e carente de seu próprio super-herói”.

Não por acaso, está começando mais um folhetim eletrônico da Globo, Celebridade, que tem na pessoa de um jornalista, no mínimo dono de ambição ilimitada, um de seus protagonistas.

Publicado há mais de uma década, o livro cumpre a função que o autor tinha em vista, ou seja, fazer um texto em co-autoria com os entrevistados, de tal forma que o mesmo não se perdesse em circunstâncias factuais e momentâneas. Mesmo considerando que alguns dos entrevistados não mais atuam nas redações onde estavam na época, há conceitos, opiniões e visões pessoais que ressaltam, sobremaneira, um agudo senso de percepção e antecipação.

Augusto Nunes era então diretor de Redação de O Estado de S. Paulo e estava no cargo desde 1988. Sobre a dificuldade de manter padrão elevado no texto jornalístico, Nunes afirmou: “Não é possível fazer um jornal, pela pressão do tempo, com o texto tão refinado quanto o de uma boa revista, mas o texto não precisa ser necessariamente tão tosco como é hoje. Mais do que da pressão do tempo, isto decorre da péssima qualidade da mão-de-obra disponível. Os recém-formados são vítimas de um sistema educacional perverso: não aprenderam a ler e por isso não conseguem escrever”.

No início da carreira, em 1972, Nunes chegou a sentir uma pontinha do complexo de Clark Kent, mas logo “esqueceu esta bobagem de quarto poder, que não somos”. Sua receita é mais objetiva. “Ora, a função social do jornalismo, a função política, ou qualquer outra função que se queira dar à profissão, será sempre a da busca da verdade”.

Marcos Sá Corrêa tem sangue de jornalista nas veias. É filho de Villas-Bôas Corrêa, pioneiro na cobertura das atividades do Congresso Nacional, quando o Rio ainda era a capital. Na ocasião da entrevista era editor-executivo do JB, cuja função alternou com passagens mais ou menos longas pela redação da revista Veja. Sobre a cobertura política, sua especialidade, Corrêa diz que ela é asquerosa, e “provavelmente uma das áreas de maior deterioração profissional”.

As razões para justificar tal pessimismo, Marcos retiraria da cobertura que a grande imprensa fez da Constituinte e das eleições diretas para a presidência, depois do longo período do governo militar. Referiu-se ao fato como um autêntico ombudsman: “Toda a imprensa brasileira cobriu estes dois episódios com incompetência constrangedora. Através do noticiário diário era praticamente impossível acompanhar o que estava acontecendo de concreto no texto da Constituição. Só se cobriam as picuinhas, as torcidas de arquibancada, os gritos do Ulisses Guimarães, os jogos de cena, o drama. E a cobertura das eleições para a presidência da República, por sua vez, foi um naufrágio: toda a imprensa cobriu aquilo levianamente, partidariamente, vergonhosamente”. Julgue o próprio leitor, depois do episódio Fernando Collor de Melo e da octaetéride do príncipe dos sociólogos, como diria Delfim Netto.

Poucos são os jornalistas brasileiros que têm no acervo a criação de tantos veículos importantes como Mino Carta. Fazendo seu depoimento, Mino revelou que “o jornalismo brasileiro vai de mal a pior, como o país também vai de mal a pior. O jornalismo não escapa à sina do país: você até pode ter fenômenos isolados em que figuras nacionais ou grupos conseguem ter uma certa contemporaneidade… é perfeitamente possível; mas, o tom geral é o da decadência. Nós somos um país decadente sem ter chegado ao apogeu”.

Para os atuais e os que pretendem se candidatar a Clark Kent, Mino Carta dá a mesma orientação que repete por onde tem passado: “A função primeira do jornalismo é fiscalizar o poder, ter uma vocação absoluta à crítica, sem obviamente criticar por criticar. Sem isto o jornalismo não tem sentido, quer dizer, ele passa a ser outra coisa, ele passa a ser apenas um prestador de serviço”.

Da entrevista dada por Armando Nogueira, decano do grupo ouvido pelo repórter brasiliense, apesar da perda de qualidade que esse ensaio vai sofrer, cito apenas um comentário, pela força emblemática da exposição que tentei com base no trabalho de Geraldinho Carneiro. É a apreciação definitiva do marquês de Xapuri, sobre o blefe que levou Collor à vitória:

“Todos os setores ligados à candidatura Collor passaram a desembarcar na TV Globo. A rigor, como a reação do Lula só ocorreu nos últimos 15 dias, eu só senti constrangimento… na antevéspera, com aquela famosa edição facciosa. Eu tinha tido controle de uma edição do último debate, que foi a do jornal Hoje; essa eu mandei fazer, a pessoa que fez é um profissional muito criterioso (Vianey Pinheiro), e depois eu pedi para que a mesma edição, muito bem feita, fosse ao ar também no Jornal Nacional. Me desliguei do assunto, mas fiquei sabendo depois que o Alberico de Souza Cruz adulterou a primeira edição, à minha revelia, com o objetivo de ajudar o candidato Collor”.

Ivan Schmidt

é jornalista e escritor.

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