Caso Maria Aparecida: estarrecedora insensibilidade jurídica

Maria Aparecida de Matos, 24 anos, empregada doméstica, mãe de dois filhos, privados no momento do convívio com a mãe, está presa há quase um ano em São Paulo porque teria tentado furtar um xampu e um condicionador em uma farmácia (cf. matéria de Gilmar Penteado, Folha de S. Paulo de 12.04.05, p. C1). Mal sabe desenhar o nome e, depois de ter sido agredida dentro do presídio, acabou perdendo a visão do olho direito.

A liberdade não lhe foi concedida nem pelo juiz de primeira instância nem, em liminar, pelo desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo. Justificativa: Maria Aparecida é reincidente e não há nenhum excesso de prazo, apesar de o processo já estar se arrastando por quase um ano. De outro lado, submetida a exame psiquiátrico, concluiu-se que conta ?com desenvolvimento mental retardado, de origem congênita, e distúrbio psíquico, com comprometimento das capacidades de discernimento?. O laudo sugere que ela seja recolhida em manicômio judiciário por pelo menos um ano, em medida de segurança.

Ignorância ou insensibilidade jurídica? O princípio da insignificância (ou da bagatela) já vem sendo aplicado pelos juízes e tribunais brasileiros há décadas. Mais recentemente, diante do furto de uma fita de videogame, de R$ 25,00, o STF (em voto magistral de Celso de Mello, HC 84.412), trancou a ação penal, reconhecendo que se trata de fato atípico (isto é, não há crime). Apesar do posicionamento da Corte Suprema, ainda há setores na nossa máquina judiciária punitiva que não aceitam a incidência do princípio da insignificância. Sinceramente, tendo em conta a grande quantidade de casos já julgados, custa acreditar que algum juiz ignore esse princípio. Resta então concluir: só pode ser caso de enorme insensibilidade jurídica!

Em dois fatos recentes no Rio de Janeiro (HC 1860/2004 lesões corporais levíssimas praticadas por policial militar – e HC 5.287/2004 furto de um garrafão de vinho) um mesmo desembargador afirmou: ?a teoria da bagatela entendo inaplicável, por se tratar de mera construção doutrinária, sem amparo legal?. O positivismo jurídico legalista, quando não temperado pela prudência, equilíbrio e razoabilidade do juiz, conduz a aberrações inomináveis!

Vale recordar que o princípio da insignificância, na verdade, está sim previsto no Código Penal militar (art. 209). E fora dessa área, mesmo sem ?lei? expressa, ele vem sendo amplamente reconhecido, inclusive pelo STF, seja porque se trata de um ?princípio geral do Direito? derivado dos valores, regras e princípios constitucionais, que são normas cogentes do ordenamento jurídico, seja porque é desproporcional a incidência do Direito Penal em casos bagatelares (o mal do crime não chega a justificar o mal da pena), seja, enfim, porque a letra da lei deve (sobretudo hoje) ser interpretada de acordo com o princípio (político-criminal) da intervenção mínima (isto é, a proteção ?penal? é fragmentária).

A reincidência, de outro lado, não pode ser obstáculo para a admissão da insignificância. Para esse efeito o fato deve ser considerado em si mesmo, independentemente do seu agente. Mas isso ainda não está claro no Código Penal Brasileiro, por essa razão é que vem sendo motivo suficiente para algumas decisões burocratas manterem na cadeia pessoas pobres e miseráveis como Maria Aparecida.

Para eliminar qualquer dúvida, não seria ruim (aliás, o contrário) que o legislador brasileiro cuidasse do tema, com a urgência que a liberdade humana requer, fixando as regras pertinentes e mais sensatas possíveis, destacando-se, dentre elas, a possibilidade de se advertir (admoestar) o agente e, até mesmo, quando o caso, de se impor algumas obrigações alternativas para quem pratica fatos insignificantes: pedido de desculpa, reparação civil dos danos, devolução de objetos, eventual prestação de serviços à comunidade (por poucos dias), pagamento de cestas básicas, prestação pecuniária em favor da vítima ou de entidades sociais, afastamento de cargo público ou da profissão ou da função por tempo bastante restrito etc..

Se de um lado o Direito Penal mostra-se absolutamente desproporcional nos casos bagatelares, de outro, é certo que não se pretende incentivar a prática de pequenas infrações. Algum tipo de obrigação ou admoestação tem que acontecer, mas como mecanismo de controle social informal, que poderia ficar sob a incumbência da própria autoridade policial (sem prejuízo do controle e supervisão judicial), não, porém, como medida de Direito penal.

Sublinhe-se que a infração bagatelar pode ser própria ou imprópria: é própria quando já nasce bagatelar (furto de uma folha de papel, de uma cebola, de duas melancias etc.); é imprópria quando não nasce bagatelar, mas dadas as circunstâncias do caso a pena (leia-se: a incidência do Direito Penal) torna-se totalmente desnecessária: quem, sobretudo quando primário, rouba sem violência um real e é preso, depois vem a ser submetido a inquérito e processo, ficando privado da liberdade por alguns dias ou meses, não merece mais nenhuma pena.

Os juízes precisam começar a aplicar o princípio da bagatela (ou da insignificância) imprópria, como causa legal de dispensa da pena, que, por sinal, é mais do que apropriada, nessa altura, para o caso de Maria Aparecida. Esclareça-se: desde o princípio já deveria ter sido arquivado o seu caso, por força do princípio da bagatela própria. Como não foi, pelo menos agora o que se espera é que seja reconhecida a bagatela imprópria, trancando-se a ação penal. Quem fica custodiado sob o poder do Estado quase um ano por tentativa de furto de um xampu e um condicionador, tendo experimentado danos morais e físicos indescritíveis e irreparáveis e perdido (inclusive) a visão do olho direito, já sofreu mais do que o necessário pelo mal que causou à vítima e à sociedade. Nenhuma pena mais é necessária. Com fundamento no art. 59 do CP, impõe-se a sua dispensa, arquivando-se o caso imediatamente.

Acertadamente editorial da Folha de S. Paulo (16.04.05, p. A2) sobre o caso enfatizou: ?É incrível que, numa situação de grave crise de segurança pública, na qual especialistas falam em ampliar a aplicação de penas alternativas, reduzir a população carcerária e tornar a Justiça mais célere e moderna, ainda haja demonstrações de tamanha insensibilidade jurídica e social?.

Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito penal pela USP, secretário-geral do IPAN (Instituto Panamericano de Política Criminal), consultor e parecerista, fundador e presidente do IELF PRO OMNIS: 1.ª Rede de Ensino Telepresencial da América Latina www.proomnis.com.br

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