Breves considerações sobre a Lei 12.234/2010

Ana Carolina Elaine dos Santos
Rafael Guedes de Castro

O Estado como único titular do “direito de punir” possui delimitações em sua função jurídico-penal, sendo, a prescrição, um dos mais importantes instrumentos de contenção da atuação discricionária do poder repressivo em detrimento da liberdade individual.

Nesse sentido, “poder-se-ia alegar para justificá-la que nem a razão, nem a humanidade, nem mesmo o interesse social, tornariam admissível deixar pesar sobre o criminoso indefinidamente a ameaça do processo ou da execução da pena”(1).

A prestação jurisdicional deve ser rápida o suficiente para que o Estado não perca os motivos para a punição sendo esta justificável se necessária e útil; lembrando que a celeridade e eficiência processual devem guardar estrita e profunda obediência aos princípios processuais garantistas.

Uma vez que o Estado queda-se inerte diante de uma relação jurídica nascida com o ilícito penal, constata-se a perda do interesse do próprio ente em fazer aplicar a sanção criminal ou de iniciar ou dar continuidade à ação penal interposta.

Inúmeros fundamentos exprimem a existência e o reconhecimento da prescrição no sistema penal.

Para Bruno, “há dois motivos que realmente concorrem para legitimá-la, um de Direito Penal, que é haver desaparecido o interesse do Estado em punir, outro de ordem processual, aplicável à prescrição anterior à sentença condenatória, que é a dificuldade de coligir provas que possibilitem uma justa apreciação do delito cometido. O tempo que passa vai alterando os fatos e com estes as relações jurídicas que neles se apóiam”.

Aduz o citado autor, que por ser o Direto uma ciência que busca a reconstrução dos fatos reais, a mudança das coisas acabam por atingir em cheio essa possibilidade, “o fato cometido foi-se perdendo no passado, apagando-se os seus sinais físicos e as suas circunstancias na memória dos homens, escasseiam e se tornam incertas as provas materiais e os testemunhos e assim crescem os riscos de que o juízo que se venha a emitir sobre ele se extravie, com grave perigo para a segurança do Direito”(2).

Para Cirino dos Santos(3), com apoio em Welzel: “o fundamento jurídico da prescrição reside na dificuldade de provar o fato imputado (no caso de prescrição da ação penal), ou na progressiva dissolução da necessidade de pena contra o autor (no caso de prescrição da pena criminal aplicada), o que confere à prescrição natureza processual (impedimento de persecução) e material (extinção da pena)”.

No mesmo sentido, Bruno(4): “a indignação pública e o sentimento de insegurança que o crime gerou amortecem com o decorrer dos anos, do mesmo modo que se atenua a revolta e exigência de justiça dos ofendidos. Assim também, com o tempo, vai-se mudando o réu em outro homem, esquece ou deforma a imagem do seu crime, a e a pena, quer como instrumento de expiação, quer como instrumento de emenda, já não encontrará o mesmo sujeito, como saiu, com a sua culpa, da pratica do delito, par anele aplicar-se com eficácia e justiça. Perde a pena o seu fundamento e os seus fins, e assim se esgotam os motivos que tinha o Estado para a punição”.

Logo, com a verificação da prescrição desaparecem a necessidade e utilidade na punição eis que o agente por ter aguardado longo período para julgamento acaba de alguma forma se redimindo pela expiação moral incidente na situação concreta; bem como se constata o esquecimento do fato delituoso acompanhado pelo desinteresse social, e a dificuldade processual na busca pela ‘tão almejada” verdade real.

O advento da Lei n.º 12.234, em vigor desde 5 de maio do corrente ano, alterou os dispositivos constantes nos arts. 109 e 110 do Código Penal, prevendo o aumento do prazo prescricional de 2 para 3 anos às infrações cuja pena máxima seja inferior a 1 ano e, a impossibilidade de a prescrição retroativa ter por termo inicial fato anterior ao recebimento da denúncia ou da queixa.

Verifica-se que, numa tentativa de tornar a lei ainda mais repressiva, a idéia inicial do legislador era a de dar fim à prescrição da pretensão punitiva retroativa, conforme se extrai do próprio corpo da lei em comento, em seu art. 1.º: Esta Lei altera os arts. 109 e 110 do Decreto-Lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, para excluir a prescrição retroativa. Mas, por alguma razão o que acabou sendo revogado é um dos lapsos temporais mais recorrentes na prática judiciária: a fase que compreendida entre o cometimento do ilícito (leia-se: data da consumação do crime, em se tratando de delitos materiais) e o recebimento da peça acusatória. Em outras palavras: a fase inquisitorial, hoje, não está mais sobre o abrigo da prescrição retroativa.

A prescrição da pretensão punitiva retroativa tem por finalidade extinguir a punibilidade do agente em decorrência da morosidade processual tendo por base a pena imposta na sentença penal condenatória. A partir do momento em que a sentença condenatória transita em julgado para o Ministério Público ou se declara improvido seu recurso, dá-se início à contagem deste prazo, de forma retroativa, de trás para frente. De acordo com o art. 110 do CP, revogado pela lei em comento, a partir da pena imposta seria observado os lapsos temporais delimitados entre a data da publicação da sentença condenatória ao recebimento da denúncia ou da queixa, e entre este e então o denominado momento anterior, que significa o momento da realização ou da consumação do crime, por exemplo.

Assim sendo, pelo disposto no antigo art. 110 a prescrição da pretensão punitiva retroativa alcançava termo (acontecimentos de ordem objetiva que tem força de interromper a contagem do prazo prescricional bem abrir ou inaugurar a contagem de tal prazo) ou fato ocorrido antes do recebimento da denúncia ou da queixa. A retroatividade poderia atingir, portanto, o momento inicial da contagem do prazo da prescrição punitiva propriamente dita.

A alteração legislativa excluiu o último período de tempo: não é mais possível, desde o dia 5 de maio do corrente ano, (princípio da legalidade em sua dimensão de lex praevia – proibição da retroatividade da novatio legis in pejus) a prescrição retroativa atingir o lapso temporal existente entre a data do recebimento da denuncia ou queixa e o momento do crime (fase em que se dá a investigação preliminar).

Tal mudança legislativa acabará certamente por produzir efeitos catastróficos no âmbito do processo penal, especificamente, no âmbito da fase pré-processual ou inquisitória, na medida em que amplia em demasia o tempo de investigação ou de colheita de indícios e materialidade do delito. Os inquéritos policiais contarão somente com a prescrição da pretensão punitiva propriamente dita cujo prazo é evidentemente muito maior que o da prescrição retroativa. Se, antes poderia haver uma ameaça da ocorrência da prescrição retroativa entre a data do fato e a do recebimento da denúncia ou queixa, hoje, tal ameaça não poderá mais se concretizar.

A nova lei representa mais uma expressão de desespero do poder legislativo que trata de assuntos relacionados à criminalidade com a edição de leis penais cada vez mais repressivas, como se estas representassem a saída eficaz para conter a criminalidade no país.

Trata-se de mais uma medida paliativa, abusiva e repressiva do Estado que tem por finalidade reduzir os direitos e garantias fundamentais em clara prevalência do ius puniendi em detrimento do ius libertatis.

Ressalta-se que a reforma da Parte Geral do Código Penal, ocorrida em 1984, previa, conforme se extrai da exposição de motivos n.º 100, a impossibilidade de a prescrição retroativa atingir fato anterior ao recebimento da denuncia ou da queixa: “norma apropriada impede que a prescrição pela pena aplicada tenha por termo inicial data anterior à do recebimento da denuncia (parágrafo 2.º do Art. 110)”.

Em comentário ao antigo artigo 110 do Código Penal, o Prof. Cirino dos Santos dispõe que “situa-se aqui a mais importante inovação em matéria de prescrição da lei penal brasileira, que modificou o projeto original (art. 110, parágrafo 2 CP): a possibilidade do termo inicial da prescrição retroativa recair em data anterior ao recebimento da denuncia ou da queixa. O projeto original dizia que “a prescrição não pode ter por termo inicial data anterior à do recebimento da denuncia”, conforme ainda exprime a exposição de motivos (n.º 100), mas o legislador alterou o projeto original, optando por uma atitude mais generosa em lugar da atitude repressiva do projeto, determinando, expressamente: “a prescrição de que trata o parágrafo anterior pode ter por termo inicial data anterior a do recebimento da denuncia ou da queixa””.

Dando azo à atitude repressiva do Estado, em clara afronta ao princípio fundamental previsto no Art. 5.º da Carta Constitucional, inciso LXXVIII que dispõe expressamente sobre o a razoável duração dos processos, incluídos os procedimentos inquisitoriais, e os meios que garantem a celeridade de sua tramitação, não há duvidas, estamos vivenciando um retrocesso histórico.

O problema reside no fato de que no Brasil tudo se resolve com a edição de leis, e aqui a questão não é diferente. É notória por parte dos operadores do direito e da própria sociedade o conhecimento da ausência de aparato policial, falta de estrutura na polícia judiciária, de profissionais treinados e qualificados. Mas, ao invés de se oferecer meios para que a fase investigativa seja de fato célere, eficaz, comprometida com a legalidade, optou-se por acabar com a prescrição retroativa contribuindo ainda mais para a demora da prestação jurisdicional.

Notas:

(1) BRUNO, Aníbal. Direito Penal. Parte Geral. Tomo 3º. São Paulo: Forense, 1967. p. 210

(2) BRUNO, Aníbal. Direito Penal. Parte Geral. Tomo 3º. São Paulo: Forense, 1967. p. 210

(3) CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal. Parte Geral. Curitiba: ICPC, 2010. p. 643

(4) BRUNO, Aníbal. Direito Penal. Parte Geral. Tomo 3º. São Paulo: Forense, 1967. p. 210

Ana Carolina Elaine dos Santos e Rafael Guedes de Castro são professores de Direito e Processo Penal da Faculdade Metropolitana de Curitiba – Famec.

Voltar ao topo