Breves anotações a respeito da tutela penal do estado de filiação

De observar-se que a família foi agasalhada pela Constituição Federal desde a Carta de 1891, embora em sentido restrito, assim entendida como a formada pelo matrimônio. Essa concepção, entretanto, evoluiu, evoluindo, em conseqüência, a legislação que passou a alcançar todos os demais organismos familiares. (1)

Por família pode-se entender “o grupo de pessoas ligadas entre si por vínculos de casamento, parentesco ou afinidade.”

A proteção do Estado às entidades familiares justifica-se por ser a família o centro da socialização, responsável pela formação e desenvolvimento de seus membros, uma vez que a formação do indivíduo irá refletir em toda a estrutura social. (2)

Entendendo fundamental a tutela do bem jurídico familiar, o Direito Repressivo igualmente destinou capítulo especial aos crimes contra a entidade familiar, previsão esta que antecedeu, inclusive, o primeiro estatuto penal brasileiro.

Certo é que o Direito Penal vige para proteger bens jurídicos. Nesse sentido, considera-se bem jurídico o valor ou bem social precioso, imprescindível ao homem e à sociedade. Serve especialmente para determinar a intervenção estatal. (3)

Desse modo, atua o Direito Penal como ultima ratio. Significa dizer que o Estado só se utilizará de meios violentos em face de condutas que lesionem ou coloquem em perigo bens jurídicos, e isso se outros meios extrapenais não forem suficientemente eficazes. (4)

Essa concepção de intervenção mínima leva em consideração o Estado Democrático de Direito e Social onde se preservam, principalmente, entre outros direitos e garantias, a liberdade e a dignidade da pessoa humana.

Com base nos comandos constitucionais, o legislador infraconstitucional passou a reprimir condutas que atentem contra a família, separando-as em capítulos distintos, dentre os quais, o ?Estado de Filiação?. Esse capítulo foi sistematizado com fulcro no bem jurídico tutelado a partir do Estatuto de 1940, pois antes sua previsão, já a partir da Lei Imperial, era feita de maneira esparsa.

Ao prever as condutas indicadas no artigo 242, isto é, “Dar parto alheio como próprio; registrar como seu o filho de outrem; ocultar recém-nascido ou substituí-lo; surprimindo ou alterando direito inerente ao estado civil”, o legislador o fez com o propósito de preservar o vínculo familiar, e especialmente os efeitos jurídicos decorrentes desse liame.

Na verdade, as condutas apontadas no tipo de injusto nada mais são que falsidades. Contudo, não foram alocadas no título das falsidades documentais porque, nesse caso, a falsidade é crime meio e não fim. Mas o principal motivo reside, repise-se, no bem jurídico tutelado no capítulo, ou seja, a organização familiar, o liame que liga o indivíduo a uma família e os efeitos decorrentes dessa relação. A razão maior, entretanto, funda-se na justificativa de que a família ?é a célula da sociedade?, sua base.

De observar-se, outrossim, que o bem jurídico não é um valor estático. Evolui com as transformações sociais, devendo ajustar-se a elas. Assim, condutas que a princípio eram consideradas ilícitas, passam a ser consideradas unicamente imorais, o que ocorre, inclusive, com algumas condutas atentatórias à família, como a bigamia e o adultério, reprimidas nos artigos 235 e 240 do Código Penal, às quais sugere-se a descriminalização. (5)

Se o Direito Penal vige para proteger bem jurídico, como foi observado prefacialmente, não pode ser assim considerado o que se consagrou tão somente por imoral.

Esse, no entanto, não é o caso dos ?Crimes contra o Estado de Filiação?, e especialmente, as condutas previstas no artigo 242. Não ferem valores morais e não estão elencadas naquele título para atender a comandos particulares. Ferem, consoante mencionado, verdadeiro bem jurídico que é lesado ou colocado em perigo com as condutas apontadas no tipo.

Ainda que se assemelhem às falsidades, merecendo, por vezes, o apenamento em concurso com estas, dizem respeito a valor jurídico especial, merecendo, por essa razão, tratamento particularizado, tudo à vista da importância de sua tutela.

Dessarte, o artigo 242 do Código Penal continua em pleno vigor, ensejando a reprimenda estatal às condutas que exponham os bens jurídicos ali resguardados.

Notas:

(1) GENOFRE, Maurício. A família contemporânea em debate. 2.º ed. São Paulo: Cortez, 1995.

(2) NORONHA, Edgard Magalhães. Direito Penal. 23.º ed. São Paulo: Saraiva, 1998.

(3) PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e Constituição. 2.º ed. revista e ampliada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.

(4) DIAS, Jorge Figueiredo. Questões Fundamentais de Direito Penal Revisitadas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.

(5) DOTTI, René Ariel. Proposta para uma nova Consolidação das Leis Penais. in: Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 28, ano 2002, p. 162-174.

Carla Liliane Waldow Pelegrini

é advogada, mestranda em Direito pela Universidade Estadual de Maringá e professora em Direito Penal.

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