As águas também morrem

Curitiba encontra-se ameaçada pela invasão indevida da região de seus mananciais abastecedores. Por experiência, sabemos quanto a água é importante para a vida dos seres humanos e da própria sobrevivência da natureza. A Organização das Nações Unidas – ONU já percebeu o problema e instituiu 2003 o Ano Internacional da Água Potável. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) endossou este pensamento e proclamou que a Campanha da Fraternidade de 2004 procurará conscientizar os fiéis a respeito do correto uso das águas, sua distribuição e não-desperdício.

Ao sair da fornalha acesa, os três jovens da Babilônia louvaram o Senhor e cantaram: “Águas todas, bendizei o Senhor! Mares e rios, fontes e nascentes, bendizei o Senhor”! (Dn 3,77-78). A atitude de louvar o Senhor sugere algumas reflexões sobre o correto uso das águas em nosso planeta.

1) Muitas pessoas poderiam estranhar a preocupação da ONU e da CNBB, mas, à medida que se encara o assunto com mais profundidade, percebe-se que 70% da superfície terrestre se encontra coberta de águas. No entanto, desta imensa mole de águas somente pequena porção está à disposição do uso caseiro. A bem da verdade, somente 2,6% do precioso líquido pode ser usado para o consumo doméstico.

É destes 2,6% que os 6 bilhões de pessoas, aves e animais devem viver. Importa acrescentar que grande parte dessas mesmas águas se encontra gelada nos pólos e no alto das montanhas nevadas. Além disso, outra parte das águas disponíveis encontram-se mal distribuídas pelas regiões do Oriente Médio, do Norte da África e Sul da Ásia.

Os relatórios da ONU apontam que 6 mil crianças morrem diariamente, devido à péssima qualidade das águas. Todas poderiam ser salvas, se houvesse um razoável tratamento do precioso líquido. Mais adiante, o mesmo relatório informa que a diarréia, oriunda da péssima qualidade das águas, nos últimos dez anos, matou mais crianças do que todas as guerras, desde a 2.ª Guerra Mundial. Acrescente-se a isso que 4 bilhões de seres humanos moram em lugares inadequados e sem condições básicas. “A falta de acesso à água potável, higiene e segurança alimentar causam enorme dificuldade a um bilhão de membros da família humana”, escreveu Kofi Annan, secretário-geral da ONU.

2) Como vai o Brasil em matéria de água potável? Neste setor, somos um país privilegiado, mas a péssima distribuição das mesmas acarreta problemas assustadores. A Amazônia detém a maior bacia fluvial do mundo e, coincidentemente, a menos povoada do Brasil. Em contrapartida, no Nordeste, as secas se prolongam e as estiagens afugentam os habitantes do cerrado para as periferias dos grandes centros urbanos. Ademais, os rios e lagos da região carecem de abastecimento regular e competente tratamento sanitário.

Os mesmos problemas se repetem nos grandes centros urbanos, quando servidos por represas poluídas por resíduos domésticos, industriais e agrotóxicos. Brasília, além de enfrentar a escassez de águas pluviais, sofre com a poluição do Lago Paranoá. Belo Horizonte luta com os garimpos poluidores, desmatamentos e esgotos domésticos. São Paulo é servida pelo Tietê e Guarapiranga, duas fontes na UTI, para não dizer mortas. O Rio Paraíba do Sul, principal fornecedor de Resende, Barra Mansa, Volta Redonda, Barra do Piraí, Campos e capital do Estado, está pela hora da morte, poluído pela indústria, dejetos domésticos, erosão, garimpos e tecnologias que degradam o ambiente.

Ante um quadro tão enegrecido, a consciência cristã sofre ao ver a criação ameaçada, agredida pela incúria popular e pela ganância de grupos econômicos. É a voracidade do sistema econômico o maior inimigo desse descalabro avassalador. Tal sistema não se detém ante o gemido das crianças, o clamor da imprensa e a revolta dos excluídos. O Rio São Francisco, velho integrador da consciência nacional, hoje se encontra encarquilhado e pedindo socorro.

Em nome desse progresso duvidoso, a Floresta Amazônica é devastada, as hidroelétricas construídas sem qualquer racionalidade ecológica, as terras mais férteis engolidas pelos lagos artificiais e seus ex-proprietários jogados à beira da estrada. Contanto que se salvem as mansões dos “barões assinalados” e suas imensas propriedades territoriais.

Resumindo, há motivos suficientes para nos preocupar com as águas moribundas, pois elas também podem morrer. Infelizmente, o reinado do todo-poderoso dólar vale mais do que a vida humana. A construção da nova “Torre de Babel”, sonho acalentado por muitos senhores abastados, é visto como solução única e exclusiva por quem desconhece a tragédia da primeira “torre” do mesmo nome.

Vendelino Estanislau

é filósofo, teólogo e professor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná.

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