Benefício assistencial ? questões polêmicas

Na análise de pedido de concessão do benefício assistencial previsto no art. 20 da Lei n.º 8.742/1993 (LOAS), o operador do Direito se vê diante de situações não contempladas expressamente no diploma legal e que podem induzir a adoção de soluções injustas.

Uma dessas situações inusitadas se refere à apuração da renda ?per capita?, a qual não pode ser superior a ¼ do salário mínimo vigente, quando no grupo familiar já exista alguma pessoa usufruindo de benefício assistencial ou que perceba aposentadoria, esta de natureza previdenciária, no valor de um salário mínimo.

Imaginemos a seguinte situação: uma senhora com 70 anos de idade requer o benefício assistencial ao idoso. O requisito etário de 65 anos estabelecido pelo Estatuto do Idoso (Lei n.º 10.741/2003, art. 34) foi cumprido. O levantamento sócio-econômico constatou que o grupo familiar é composto apenas pela mãe e por um filho deficiente, sendo que a subsistência deles é garantida pelo recebimento de benefício assistencial ao filho portador de deficiência no valor de um salário mínimo.

Em princípio, observa-se que a renda mensal ?per capita? do grupo familiar supera o requisito exigido pela lei ¼ do salário mínimo e o pedido de benefício assistencial ao idoso seria negado. Neste ponto, entendemos necessárias algumas relevantes observações.

O Estatuto do Idoso (Lei n.º 10.741/2003), no parágrafo único do artigo 34, estabeleceu o seguinte (grifamos):

Art. 34. Aos idosos, a partir de 65 (sessenta e cinco) anos, que não possuam meios para prover sua subsistência, nem de tê-la provida por sua família, é assegurado o benefício mensal de 1 (um) salário-mínimo, nos termos da Lei Orgânica da Assistência Social LOAS.

Parágrafo único. O benefício já concedido a qualquer membro da família nos termos do ?caput? não será computado para os fins do cálculo da renda familiar ?per capita? a que se refere a LOAS.

Diante da disposição legal acima descrita, exclui-se da renda familiar, para efeito de aferição da renda ?per capita?, aquela proveniente do membro da família que, contando com mais de 65 anos de idade, receba benefício de valor mínimo referente a outro benefício assistencial ao idoso. Contudo, entendemos que a interpretação daquela norma deve ser a mais benéfica possível, porque embora a norma mencionada faça menção apenas à hipótese do benefício referido em seu ?caput? (benefício ao idoso), evidencia-se que, em atenção ao princípio da isonomia, deve aquela ser observada nos casos de qualquer benefício de valor mínimo, porém, sempre atendido o requisito etário do respectivo beneficiário. Esse entendimento já foi adotado pela Turma Recursal dos Juizados Especiais da 4.ª Região (autos n.º 2003.70.01.003444-7, julgado em 24-03-2004, Relator Juiz Gerson Luiz Rocha).

Seria flagrante injustiça que a mãe idosa, com mais de 65 anos, tivesse seu benefício assistencial negado pelo simples fato de seu filho, portador de deficiência, estar recebendo igual assistência do INSS, como é o caso proposto. É evidente que uma mãe pobre, de idade avançada e com filho deficiente, precisa de mais ajuda pecuniária do que aquela que tem um filho com plenas condições de atuar no mercado de trabalho. São situações absurdas que ferem os princípios constitucionais da razoabilidade e da dignidade da pessoa humana.

Outra hipótese, seria a situação de que a mãe ou pai, com mais de 65 anos de idade, recebe aposentadoria no valor de um salário mínimo (ou pouco mais que isso, ex.: R$ 380,00) e um filho vem requerer o benefício assistencial ao deficiente. Na letra fria da lei, haveria superação da renda ?per capita? de um salário mínimo e indeferimento do benefício ao filho deficiente. Frise-se que o benefício assistencial ao idoso, equivalente a um salário mínimo, não se distingue substancialmente de uma aposentadoria/benefício assistencial do mesmo valor, ainda mais quando esta, no exemplo proposto, é paga a pessoa idosa (com mais de 65 anos de idade), a qual poderia, inclusive, renunciar ao benefício previdenciário/assistencial e buscar, também, benefício assistencial ao idoso. Ou seja, o pai ou mãe, com mais de 65 anos, renunciaria à aposentadoria e passaria a perceber o benefício assistencial ao idoso e o filho receberia o benefício assistencial ao deficiente. Evidente que não há necessidade dessa renúncia, basta a interpretação da lei de acordo com a finalidade social almejada pela norma (art. 5.º da Lei de Introdução ao Código Civil).

A terceira hipótese é de um casal de idosos, ambos com mais de 65 anos de idade, e um deles recebe aposentadoria no valor de um salário mínimo. Da mesma forma, se o outro cônjuge vem requerer o benefício assistencial ao idoso, haveria indeferimento pela superação do limite da renda ?per capita? de ¼ do salário mínimo. Novamente, insistimos que o benefício assistencial ao idoso, equivalente a um salário mínimo, não se distingue substancialmente de uma aposentadoria/benefício assistencial do mesmo valor, ainda mais quando esta, no exemplo colacionado, é paga a pessoa idosa (com mais de 65 anos de idade), a qual poderia, inclusive, renunciar ao benefício previdenciário/assistencial e buscar, também, benefício assistencial ao idoso.

Tomemos uma quarta hipótese: uma mãe que requeresse o benefício assistencial a dois filhos deficientes e teria um benefício concedido e outro negado, em razão da renda ?per capita? (sem outras fontes de renda). É evidente que uma mãe pobre que tem dois filhos deficientes precisa de mais ajuda pecuniária do que a que tenha apenas um.

Assim, tendo em vista o mencionado dispositivo do Estatuto do Idoso e forte nos princípios da dignidade humana, da razoabilidade, da isonomia e da solidariedade social, propomos que, para fins de verificação da renda familiar, ao proceder-se ao cálculo da renda ?per capita?, devam ser inicialmente excluídos da renda total, tantos salários mínimos quantos forem os idosos (mais de 65 anos de idade) ou portadores de deficiência daquela família que percebam aposentadoria ou benefício assistencial, observada a miserabilidade constatada no caso concreto. Sim, porque também há quem tenha ótima situação econômico-financeira e quer se aproveitar para ganhar mais um dinheirinho às custas do cofre público.

Outra questão que merece atenção é o preenchimento do requisito incapacidade para a vida independente, exigido pela Lei n.º 8.742, para concessão do benefício assistencial ao deficiente.

O entendimento jurisprudencial se consolidou no sentido de que a incapacidade para a vida independente a que se refere a Lei n.º 8.742 deve ser interpretada de forma a garantir o benefício assistencial a uma maior gama possível de pessoas portadoras de deficiência. Para tanto, referido requisito não exige que a pessoa possua uma vida vegetativa ou que seja incapaz de locomover-se; do mesmo modo, não significa que a incapacidade seja para as atividades básicas do ser humano, tais como se alimentar, fazer higiene e vestir-se sozinho; além disso, não se impõe a incapacidade de expressar-se ou de comunicar-se, e também não pressupõe dependência total de terceiros.

Nos palavras do ilustre Juiz Federal Gerson Luiz Rocha:

Nesse sentido, tenho reiteradamente afirmado que a condição de ?incapacidade para a vida independente?, exigida pelo legislador ordinário para a conceituação de deficiente, para os fins do benefício assistencial previsto no art. 20 da Lei n.º 8.742/93, deve ser interpretada conforme a Constituição, uma vez que o benefício em exame tem sede no inciso V do art. 203 da Carta, que assegura a percepção de um salário mínimo mensal ao deficiente que comprove não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida pela família.

Não se pode, portanto, dar à norma referida a interpretação que lhe tem dado a autarquia previdenciária, no sentido de somente considerar deficiente o incapacitado para todos os atos da vida (alimentação, higiene pessoal, locomoção, etc.), pena de se inviabilizar a percepção do benefício, afrontando-se, desse modo, o princípio constitucional da universalidade da cobertura e do atendimento (CF, art. 194, I), norteador da seguridade social, deixando ao desamparo todos aqueles que não obstante sejam portadores de deficiências que os impedem de prover a própria subsistência ou de tê-la provida pela família, estejam aptos para os mencionados atos da vida cotidiana (AC 2000.71.05.0006373 e AG 2001.04.01.0684686, TRF/4.ª Região).

O Decreto n.º 3.298/99 conceitua deficiência como sendo ?toda a perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano?. Nesse sentido, há que se entender que toda a disfunção que imponha limites à atividade laboral humana configura deficiência. Uma vez que tal deficiência seja de tal ordem que incapacite, efetivamente, para o trabalho, estará o deficiente inapto a prover a própria manutenção. Verificada, a seguir, a incapacidade econômico-financeira do núcleo familiar, o benefício deve ser concedido. (Autos n.º 2005.70.95.010723-2 da Turma Recursal do Paraná, razões do voto no acórdão proferido em 23/03/2006).

Dessa preciosa lição, deduz-se que a incapacidade para o trabalho implica, necessariamente, incapacidade para a vida independente num sentido amplo.

Esse entendimento foi sufragado pela Turma Uniformização Nacional de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais:

Súmula n.º 29

Para os efeitos do art. 20, § 2.º, da Lei n.º 8.742, de 1993, incapacidade para a vida independente não é só aquela que impede as atividades mais elementares da pessoa, mas também a impossibilita de prover ao próprio sustento.

É a nossa contribuição para debate sobre temas tão pouco explorados pela doutrina.

Márcio Augusto Nascimento é juiz Federal, lotado na 2.ª Vara Federal do Juizado Especial Federal Cível de Londrina-PR.

Voltar ao topo