Ato obsceno: quando o Direito Penal se torna uma loteria?

Muitos tipos legais (artigos de lei que descrevem condutas criminosas) possuem requisitos normativos (leia-se: que dependem de juízo de valor). Esses requisitos normativos podem ser da ilicitude (em alguns tipos legais o legislador insere dados da ilicitude dentro da própria descrição típica: indevidamente (CP, art. 151), sem justa causa (CP, art. 153), etc.), ou jurídicos (conceito de funcionário público, por exemplo) ou culturais. O crime de ato obsceno é exemplo característico: exige juízo de valor cultural. Quando o sujeito mostra o pênis em via pública parece não haver dúvida de que está praticando ato obsceno. E quando um diretor teatral, no interior de um estabelecimento teatral, mostra suas nádegas, seria delito?

A Segunda Turma do STF concedeu, no dia 17/08/04, Habeas Corpus (HC 83996) ao diretor teatral Gerald Thomas e determinou o imediato trancamento da ação penal proposta contra ele no Juizado Especial Criminal do Rio de Janeiro. Thomas foi acusado de praticar ato obsceno, previsto no artigo 233 do Código Penal, justamente porque mostrou suas nádegas para o público.

O diretor reagiu a vaias do público do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, que assistia, em outubro de 2003, a uma montagem da ópera Tristão e Isolda. Gerald Thomas baixou as calças, mostrou as nádegas para a platéia e simulou ato de masturbação.

O Direito penal torna-se uma verdadeira loteria quando o tipo legal descreve requisitos normativos culturais porque a existência ou não de crime vai depender da cabeça de cada juiz. No caso concreto acima citado houve empate no julgamento. O ministro Carlos Velloso, relator, e a ministra Ellen Gracie indeferiram o pedido, enquanto os ministros Gilmar Mendes e Celso de Mello deferiram.

O presidente da Turma, Celso de Mello, agiu de acordo com o Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal que determina, no parágrafo 3º, do artigo 150 que, em casos de habeas corpus, havendo empate, prevalecerá a decisão mais favorável ao paciente. O ministro Joaquim Barbosa considerou que não teria condições de votar porque não assistiuà sessão em que foi lido o relatóriodo caso.

Um pedido de vista do ministro Gilmar Mendes suspendeu o julgamento em maio deste ano, após o voto do ministro Carlos Velloso, que indeferiu o pedido. Ele considerou que a conduta atribuída a Gerald Thomas se ajustaria ao tipo inscrito do artigo 233 do Código Penal e que, para a configuração do crime, não é necessária a intenção específica de ofender o pudor público.

No julgamento do dia 17.08.04, o ministro Gilmar Mendes abriu dissidência. Disse que, no caso, apesar de a manifestação do diretor teatral ter sido deseducada e de mau gosto, tudo não passou de um protesto grosseiro contra o público. Segundo o ministro, quando simulou a masturbação, Gerald Thomas não estava pretendendo mostrar qualquer prazer sexual, mas que as vaias não lhe atingiam.

Segundo Gilmar Mendes, o contexto em que se verificou o fato não pode ser esquecido, pois se tratava de um momento seguintea uma apresentação teatral, após uma manifestação desfavorável do público, às duas horas da manhã. “Difícil admitir, neste contexto, que a conduta do paciente tivesse atingido o pudor do público. Um exame objetivo da querela há de indicar que a discussão está integralmente inserida no contexto da liberdade de expressão, ainda que inadequada ou deseducada”, acentuou.

O ministro salientou que a sociedade moderna dispõe de mecanismos próprios e adequados a esse tipo de situação, como a própria crítica, “prescindindo-se do eventual enquadramento penal”.

A ministra Ellen Gracie indeferiu o pedido. Acentuou que a conduta de Gerald Thomas, “pouco edificante e esteticamente questionável”,demonstra desprezo pela opinião do público: “Entendoque o público é a maior razão de existência das artes cênicas”. A ministra lembrou que “figuras bem mais qualificadas, como Victor Hugo, adotaram postura de humildade diante daqueles que não compreenderam na época as inovações introduzidas nas suas criações”.

Último a votar, o ministro Celso de Mello questionou se poderia se revestir como obsceno “um ato praticado no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, às duas horas da manhã, perante um público culto e sofisticado”. Segundo o ministro, o conceito de obscenidade é variável no tempo e no espaço e, tendo em vista o contexto em que a conduta ocorreu, “tenderia a reconhecer que foi muito mais uma expressão, ainda que grosseira, mas de sua própria liberdade de manifestação e reação às vaias”.

Ainda de acordo com Celso de Mello, quando a doutrina discute a questão de obscenidade para efeito de configuração no artigo 233 do Código Penal, salienta que o ato obsceno real ou simulado deve ter uma conotação sexual, transgredindo o sentimento de decência da coletividade. “Isso ofenderia o pudor de coletividades interioranas em nosso país, em determinadas regiões, mas não me parece que na cidade do Rio de Janeiro, antiga capital federal, centro culturalmente evoluído, esse ato possa ser reconhecido como impregnado de obscenidade”, finalizou.

Luiz Flávio Gomes

é doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, Mestre em Direito penal pela USP, Secretário-Geral do IPAN (Instituto Panamericano de Política Criminal), Consultor e Parecerista e Diretor-Presidente da TV Educativa IELF (1.ª TV Jurídica da América Latina com cursos ao vivo em SP e transmissão em tempo real para todo país –
www.ielf.com.br).

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