Aspectos inovadores da Propriedade no Novo Código Civil (I-V)

O NCC conceitua propriedade no caput do artigo 1.228, limitando-o, no parágrafo 1.o, para adequá-lo aos problemas da contemporaneidade, fazendo referência a questões como o “equilíbrio ecológico” e a “poluição”.

Este parágrafo, que constitui um inovação em relação do Código anterior, preceitua que o “direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas”.

Subordinar o exercício do direito de propriedade às suas finalidades econômicas e sociais significa limitar este direito, que deixa de ser visto como um direito absoluto, para compreendido a partir de sua função(1), à semelhança do contrato, cuja liberdade fica limitada em razão e nos limites da função social do contrato (art. 421/NCC)(2).

É certo que a função social da propriedade já está prevista na CF-88 (arts. 5.o, inc. XXIII, e 170, inc. III) – a propósito do que afirma a Lei Fundamental de Bonn, de 1949, em seu artigo 14, alínea 2.o (“A propriedade obriga. O seu exercício deve ao mesmo tempo servir ao bem-estar geral”) -, mas a sua inserção no NCC é importante, com a finalidade de limitar o exercício do direito de propriedade, assumindo o papel de verdadeira cláusula geral(3).

Pelo NCC, a propriedade, sem deixar de ser um direito subjetivo, um jus, passa a ser considerada, também, um munus, exprimindo, simultaneamente, um direito e um dever. Assim, deixa de ser um direito pleno, retirando-se da propriedade privada sua incondicional prevalência, e, destarte, não se legitimando todo e qualquer ato ou omissão do proprietário, na medida em que o seu conteúdo depende de interesses extraproprietários, inseridos na relação jurídica de propriedade, pelo estatuto jurídico que dá configuração à sua função social(4).

Em termos hermenêuticos, a função social implica a adaptação de sentidos e finalidades, a fim de que as regras jurídicas sejam interpretadas sociologicamente e teleologicamente. Deste modo, o NCC abandona definitivamente o paradigma do individualismo jurídico, permitindo que o magistrado concretize a conhecida regra de interpretação prevista no Decreto-lei 4.657/42 (LICC): “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se destina e às exigências do bem comum” (art. 5.o)(5).

A propriedade desempenha uma função social, quando está voltada a realização de um fim economicamente útil, produtivo, em benefício do proprietário e de terceiros, especialmente quando se dá a interação entre o trabalho e os meios econômicos(6).

Ao afirmar que o direito de propriedade deve desempenhar uma função social, o NCC também faz com que os interesses do proprietário e os da sociedade sejam conciliados, bem como reconhece o interesse que o Estado tem na propriedade(7), a fim de que, havendo conflito entre o interesse público e o particular, possa fazer prevalecer o primeiro, em razão da supremacia dos interesses públicos sobre os individuais(8) (v.g., com intuito de buscar a proteção ambiental, que é um bem de uso comum do povo, pelo art. 225, caput, da CF, cabe ao Poder Público(9) e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo, para as presentes e futuras gerações, bem como para o exercício do poder de polícia, como pode se dar na vistoria compulsória de imóvel para o combate do mosquito que transmite a dengue, mesmo contra a vontade do proprietário, precedida de autorização judicial; art. 5.o, inc. XI, CF)(10).

A propósito, da competência administrativa, restritiva do direito de propriedade particular, já decidiu o STJ: a) que a administração pode embargar obra da construção, em loteamento irregular, que está sendo edificado em área de preservação ambiental e de propriedade do Distrito Federal(11); b) que o órgão administrativo pode, para evitar danos ao meio ambiente, praticar atos executórios(12); tratava-se de empresa que teve seus altos fornos lacrados por ato do Conselho Estadual de Política Ambiental(13). Por outro lado, a função social, com vistas a proteção do meio ambiente, não pode aniquilar o direito de propriedade, sob pena de se violar o princípio da isonomia, dando ensejo à responsabilidade do Estado. Por exemplo, caso, por lei estadual, o proprietário fica impedido de implementar loteamento por ter sido a área considerada de proteção ambiental, terá direito a ser indenizado(14).

NOTAS

(1) Na lição humanista de Eroulths Cortiano Júnior, “a apropriação de bens merece ser vista e protegida enquanto atribuição de titularidades às pessoas no sentido de lhes garantir o existir como pessoas. Não se trata, então, de uma titularidade abstrata sobre coisas que se abstraem porque mercadorias, mas uma titularidade funcional, dirigida à manutenção da dignidade da pessoa humana, e exercitável sobre coisas concretas porque têm importância concreta para o homem. (…). Recuperar a transcendência das coisas, reaver o que a titularidade das coisas tem de instrumento para a realização concreta da existência humana, significa ver a apropriação com outros olhos”. Cfr. Para além das coisas (Breve ensaio sobre o direito, a pessoa e o patrimônio mínimo). In: Diálogos de Direito Civil. Construindo a racionalidade contemporânea. Org. Luiz Edson Fachin e outros. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. Pág. 163. Verificar, ainda: Pietro Barcellona. El individualismo proprietario. Trad. de Jesús Ernesto García Rodríguez. Madri: Trotta, 1996.

(2) Cfr. Sérgio José Porto. O projeto de Código Civil e o Direito das Coisas. Revista dos tribunais, vol. 794, dezembro/2001, pág. 48.

(3) Nesse sentido, cfr.: Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery. Novo Código Civil e legislação extravagante anotados. São Paulo: RT, 2002. Pág. 418.

(4) Para Gustavo Tepedino, a propriedade “não seria mais aquela atribuição de poder tendencialmente plena, cujos confins são definidos externamente, ou , de qualquer modo, em caráter predominantemente negativo, de tal modo que, até uma certa demarcação, o proprietário teria espaço livre para suas atividades e para a emanação de sua senhoria sobre o bem. A determinação do conteúdo da propriedade, ao contrário, dependerá de centros de interesses extraproprietários, os quais vão ser regulados no âmbito da relação jurídica de propriedade” (Contornos constitucionais da propriedade privada. In: Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. Pág. 280).

(5) A LICC, apesar de estar anexa ao CC-16, é uma “lei” autônoma, que versa sobre importantes aspectos da Teoria Geral do Direito, como o ato jurídico perfeito, a coisa julgada, o direito adquirido, a irretroatividade das leis e a vacatio legis; por isto, salvo naquilo em que o NCC tenha regulado de maneira diversa, ela não foi revogada.

(6) Cfr. Miguel Reale Júnior. Casos de direito constitucional. São Paulo: RT, 1992. Pág. 14.

(7) “Sabe-se que a propriedade é o direito individual que assegura a seu titular uma série de poderes cujo conteúdo constitui objeto do direito civil; compreende os poderes de usar, gozar e dispor da coisa, de modo absoluto, exclusivo e perpétuo. Não podem, no entanto, esses poderes ser exercido ilimitadamente, porque coexistem com direitos alheios, de igual natureza, e porque existem interesses públicos maiores, cuja tutela incumbe ao Poder Público exercer, ainda que em prejuízo de interesses individuais. Entra-se aqui na esfera do poder de polícia do Estado, ponto em que o estudo da propriedade sai da órbita do direito privado e passa a constituir objeto do direito público e a submeter-se a regime derrogatório e exorbitante do direito comum” (Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2002. Pág. 120).

(8) Esse artigo 1.228 do NCC é uma regra mais de direito público que de direito privado, pois opta, prioritariamente, por tutelar os interesses públicos e apenas, reflexamente, os interesses individuais. Isto é um reflexo das reações surgidas no final do século XIX contra o individualismo jurídico exacerbado, fazendo com que o Estado abandonasse a sua posição passiva e passasse a atuar mais ativamente na ordem sócio-econômica, antes relegada à esfera do direito privado. Destarte, o direito civil deixa de ser um mero instrumento de garantia dos direitos dos indivíduos, assumindo o mais relevante escopo de buscar a realização do bem-estar coletivo e do bem comum. A efetividade do princípio da supremacia do interesse público sobre o particular – também denominado de princípio da finalidade pública – deixa de ser uma preocupação exclusiva dos direitos constitucional e administrativo, para ser também um dos mais importantes fins do direito civil.

(9) “Um ambiente saudável é o limite ao livre exercício da atividade econômica e, para defendê-lo e garantir a sadia qualidade de vida da população, o Estado tem o poder-dever de intervir na atuação empresarial, mediante a edição de leis e regulamentos que visem a promover o desenvolvimento sustentado” (Luís Roberto Barroso. A ordem econômica constitucional e os limites à atuação estatal no controle de preços. http://www.direitopublico.com.br Revista Diálogo Jurídico, vol. 14, junho/agosto 2002, pág. 10). Por desenvolvimento sustentado, entende-se aquele que visa atender às necessidades do presente, sem comprometer a capacidade da futura geração de satisfazer as próprias necessidades. Cfr. Maria Helena Diniz. Dicionário jurídico. Vol. 2. São Paulo: Saraiva, 1998. Pág. 94.

(10) Outro bom exemplo a propósito das limitações ao direito (individual) de propriedade são as jazidas, os recursos minerais e os potenciais de energia hidráulica que constituem propriedade distinta do solo e pertencem à União, por força dos artigos 176 e 177 da Constituição Federal. Tais regras constitucionais foram assimiladas no caput do artigo 1.230 do NCC, ao afirmar que a “propriedade do solo não abrange as jazidas, minas e demais recursos minerais, os potenciais de energia hidráulica, os monumentos arqueológicos e outros bens referidos por leis especiais”. Porém, o parágrafo único deste dispositivo permite que o proprietário do solo explore os recursos minerais de emprego imediato na construção civil, desde que não submetidos à transformação industrial, obedecido ao disposto em lei especial.

(11) ROMS 4.600-DF – 1.a T. – rel. Min. Garcia Vieira – j. 06.02.1995 – pub. DJU 06.03.1995, pág. 4.314.

(12) ROMS 8.294-MG – 2.a T. – rel. Min. Ari Pargendler – j. 10.03.1998 – pub. DJU 30.03.1998, pág. 26.

(13) Cfr. Ruy Rosado de Aguiar. O meio ambiente e a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Revista de direito ambiental, vol. 25, pág. 197.

(14) “Administrativo. Desapropriação indireta. Limitação administrativa. (…). 3. É devida indenização por determinação de ato impedindo o proprietário de implantar loteamento ou de efetuar qualquer modalidade de parcelamento do solo, em área considerada de proteção ambiental, por lei estadual, no caso a de num. 5.598, de 08.02.1987, do Estado de São Paulo. 4. Não aplicáveis ao caso o Código de Águas, o Código Florestal e a Lei de Parcelamento do Solo Urbano. 5. Indenização fixada com base no conjunto probatório e tendo em vista as determinações da Lei Local. 6. Interesse de agir do proprietário do imóvel que se apresenta inquestionável” (STJ – REsp. 142.713-SP – 1.a T. – rel. Min. José Delgado – j. 05.05.1998 – pub. DJU 03.08.1998, pág. 89).

Eduardo Cambi

é mestre e doutor em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Professor de Direito Processual Civil da PUC PR e dos cursos de mestrado da Unespar e da Unisul. Assessor jurídico do TJ/PR.

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