Armas: a munição da hermenêutica

Garantia maior do Estado de Direito, ninguém é ingênuo o suficiente para supor possa a democracia subsistir sem o livre funcionamento de um Poder Judiciário forte e autônomo, capaz de fazer prevalecer o governo das leis sobre o governo dos homens, este nem sempre convergente, em sua atuação concreta, à meta maior daquele, qual seja, de justiça substancial.

Freqüentemente, por isso mesmo, vê-se o Judiciário diante de enormes desafios que o colocam à prova, como guardião imparcial, de tutor dos mais relevantes interesses da sociedade, submetendo-se a enfrentamentos que o levam a traduzir para arena pública a correta hierarquia dos essenciais valores de regência social, fundados no núcleo da dignidade humana.

Exemplo atual disso são as macro-questões levadas a juízo da Suprema Corte de Justiça, das quais depende, muitas vezes, a felicidade ou infelicidade de legiões de brasileiros miseráveis, a exemplar responsabilização de agentes públicos ímprobos, dentre tantas outras conseqüências, posto, de sua dicção, espraiar-se para as instâncias inferiores, com a força de sua autoridade, efeitos vinculantes ainda que informais, mas determinantes ao construto da elementar base de hermenêutica jurídica.

De fato, estamos às vésperas de grandes definições previdenciárias, tributárias, políticas, questionando-se até mesmo o poder investigatório suplementar do Ministério Público, instituição que, nesse exercício, tanto ganho trouxe à nova agenda nacional.

Pois bem! Esta introdução vem a propósito de recente posicionamento do egrégio Supremo Tribunal Federal, após ingente discussão, destacando-se o entendimento contrário da iluminada ministra Ellen Gracie, no Recurso de Habeas Corpus n.º 81057 interposto contra acórdão do Superior Tribunal de Justiça, pondo fim à celeuma referente à adequação típica do crime de arma, dele excluindo, a partir da reafirmação de sua objetividade jurídica – a incolumidade pública – a arma desmuniciada, fundamentalmente, por não ver atingido ou ameaçado, na hipótese, o bem jurídico em tutela.

Crítico assumido dos exagerados rigores resultantes do clima um tanto emocional com que se tratou a matéria, em termos do último movimento de reforma legislativa (Estatuto do Desarmamento), sinto-me bem à vontade para fazer esta ligeira e despretensiosa anotação.

A par dos inúmeros prováveis desdobramentos práticos que tal manifestação pretoriana pode causar, não apenas no que diz respeito aos processos em andamento, mas às incontáveis condenações já transitadas em julgado, estas no aspecto substancial de justiça, importa objetiva consideração acerca dos reflexos imediatos dessa decisão sobre outras orientações jurisprudenciais procedentes inclusive de igual fonte.

Sabido que o cancelamento da Súmula 174, do STJ, se deu exclusivamente em função do advento da então novatio legis incriminadora (Lei n.º 9.437/97, artigo 10, § 1.º, inciso II), que passou a tratar, como figura autônoma, a conduta de utilizar arma de brinquedo (utilização de arma de brinquedo ou simulacro de arma capaz de atemorizar alguém, quando destinadas ao cometimento de crimes), fundando-se o legislador em seu efeito intimidante para a prática de outros delitos, pergunta-se: com a nova orientação do Supremo Tribunal Federal, seria possível sustentar a constitucionalidade desse dispositivo, não obstante sua não repetição típica no Estatuto do Desarmamento (Lei n.º 10.826/03), levando-se em conta, contudo, eventuais condenações definitivas anteriores (HC n.º 21513/RJ, STJ)? Afirmando-se tal incompatibilidade formal – na esteira, aliás, da melhor recomendação doutrinária – e diante da abolitio criminis, seria o caso de sustentar-se, então, a repristinação daquele enunciado sumular? Ou, afinal, seriam inconciliáveis, logicamente, as precedentes indagações?

O que pensar, além, quanto às novas ações típicas, relacionadas às armas, que dispensam sua aptidão para gerar potencialidade lesiva concreta?

Pode-se imaginar a cena de um outro maníaco do shopping, dirigindo-se com sua automática a uma nova sessão movie macabra, com o intuito de municiá-la no trajeto, supondo-se a possibilidade de adquirir projéteis intactos de alguém ou de algum comércio situado nas imediações, mas interceptado antes de alcançar a aquisição, agora, em princípio, sem chance de ser colhido em flagrante, pois obviamente não irá admitir sua pretensão, permanecendo, assim, livre para outras eventuais aventuras de terror.

Por isso mesmo, a nova orientação pretoriana deve ser compreendida em seu âmbito exato. Neste sentido, esclarecedor o sempre lúcido voto do Ministro Sepúlveda Pertence, considerando, naquele caso – (em que se pretendeu o trancamento de ação penal instaurada contra o paciente pela suposta prática do crime de porte ilegal de arma), por atipicidade da conduta, estando a arma desmuniciada -, o fato de a denúncia não fazer menção à existência ou não de munição acessível ao agente, mediante invocação do princípio da disponibilidade, por entender não realizado aquele tipo penal, já que o revólver, naquela situação específica, seria inidôneo para a produção de disparo.

Com a correta compreensão, respeito e acatamento às judiciosas razões que levaram os cultos e doutos Ministros da Excelsa Corte a firmarem aquele entendimento, é possível que tenham se limitado mais a atentar para o estrito conceito de incolumidade pública, no sentido concreto de efetiva exposição a perigo do bem jurídico protegido.

Certamente, o porte e manejo de armas desmuniciadas, estágios vestibulares para sua utilização, cessão, comercialização, etc., representam potencial risco à segurança coletiva a reclamar, cada vez mais, eficiente tutela do já esgarçado tecido social brasileiro, tão suscetível e vulnerável à violência praticada com o emprego de armas.

Não é sem propósito que a melhor doutrina já vinha ponderando:

“Tendo em conta esse perigo efetivo real, comprovado enfaticamente no nosso dia-a-dia (de cada 100 homicídios no Brasil, mais de 26 são causados por arma de fogo), é que a lei só prevê a possibilidade de autorização para portar arma de fogo ao requerente que comprovar idoneidade, comportamento social produtivo, efetiva necessidade, capacidade técnica e aptidão psicológica para o manuseio de arma de fogo – art. 7.ºª (Lei de Armas de Fogo – Luiz Flávio Gomes e Willian Terra de Oliveira – RT – p. 45).

Que se busque, então, o registro prévio da arma, ainda que se pretenda trazê-la, circunstancialmente, sem munição.

Essa foi, sem dúvida, a boa intenção do legislador, embora mediante, até certo ponto, exacerbado rigor legal.

Gilberto Giacoia

é procurador de Justiça do Ministério Público do Paraná.

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