Antecedentes criminais e presunção de inocência direitos humanos: O encargo probatório do Estado Ministerial na Administração de Justiça Democrática

Num conceito lato sensu ?administração de justiça penal? engloba não somente o Poder Judiciário, mas também o Ministério Público, a Defensoria Pública, a Polícia Judiciária civil e federal, os servidores e auxiliares da justiça, enfim, todos os profissionais do direito e das ciências afins, que atuam para a solução dos conflitos sociais – crimes, todos, cada qual com sua atribuição ou competência objetivando apresentar uma resposta efetiva á cidadania em geral, com a finalidade do devido processo legal e a reintegração social do apenado como objetivo da pena privativa de liberdade.

Todos os protagonistas do direito e os respectivos órgãos estatais de segurança pública e jurídica, integrados em um mesmo organismo, com a mesma missão e profissão de fé, esperança e justiça, tentam diminuir a taxa da delinqüência – com a prevenção – e frear a reincidência criminal – com a repressão-.

Se a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito (art. 1.º CF), obviamente que o Direito Penal ou a Administração de Justiça Penal também deve ser democrática, ante o princípio da representação popular, onde todo poder emana do povo e em seu nome será exercido, por meio de seus representantes (Parágrafo único do art. 1.º CF), na incumbência da prestação jurisdicional (art. 5.º inc. XXXV CF) e na tutela dos direitos individuais indisponíveis (art. 127 CF), em prol da dignidade da pessoa humana (art. 1.º, III CF).

Nesta ótica de interpretação e leitura do texto constitucional e dos instrumentos de Direitos Humanos, vigentes e pertencentes ao ordenamento jurídico pátrio, temos como garantia fundamental da cidadania, a presunção de inocência (art. 5.º inc. LVII CF), para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3.º I CF).

O direito penal positivo brasileiro expressa que os tratados e convenções internacionais possuem força de lei federal e as cláusulas constantes nos instrumentos de Direitos Humanos são pétreas e portanto se encontram no mesmo nível das garantias fundamentais constitucionais da cidadania (art.1.º, I CPP e art. 4.º, II, 5.º ?caput?, inciso XLI, e § 1.º, 2.º e 3.º Emenda Constitucional n.º 45/2004 CF).

A presunção de inocência e o direito de asseguramento e preservação da privacidade e intimidade está previsto na Constituição Federal, no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (ONU/1966), na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (OEA/1969), ambos instrumentos aderidos pelo governo brasileiro em 1992; bem como na Declaração Universal, a saber:

O artigo 11 da Declaração Universal de Direitos Humanos da ONU formula a presunção de inocência: ?Toda pessoa acusada de um delito tem o direito a que se lhe presuma inocente, até que se demonstre a culpabilidade segundo a lei e em um juízo público em que terá todas as garantias necessárias para a sua defesa? (MAIA NETO, Cândido Furtado, in ?Código de Direitos Humanos. Para a Justiça Criminal Brasileira?, Ed. Forense, Rio de Janeiro, 2003).

O Conselho Nacional de Política Criminal do Ministério da Justiça por sua Resolução n.º 7/93, dispôs sobre preservação da imagem e intimidade da pessoa sujeita a procedimento investigatório envolvendo matéria criminal, e também o governo do Estado do Paraná através do Decreto n.º 465/91, sobre a proteção ao direito de imagem e da privacidade do preso; tudo em conformidade com o previsto nas Regras Mínimas das Nações Unidas para os Reclusos (1955), onde: ?o acusado gozará de presunção de inocência e deverá ser tratado em conseqüência (MAIA NETO, Cândido Furtado, in ?Direitos Humanos do Preso?, ed. Forense, Rio de Janeiro, 1998, págs. 90 e 157).

Além do mais, toda interpretação deve ser favorável e não se pode menosprezar dispositivo de instrumentos internacional, invocando lei interna, assim estipula a Convenção de Viena sobre Direitos dos Tratados/ ONU-1969. (MAIA NETO, ob. cit. ?Direitos Humanos do Preso?, pg. 03)

O processo penal, por si é estigmatizante, maléfico e atentatório contra a dignidade da pessoa humana, mesmo quando respeitada e consagrada a presunção de inocência. Esta é a razão impar de ser considerado o direito penal e a prisão como a ultima ratio das ciências jurídicas e das espécies de sanções, no Estado Democrático de Direito.

As próprias Diretrizes das Nações Unidas para os representantes do Ministério Público, expressam na cláusula 18 que deve-se acelerar os processos criminais para evitar o estigma criado pela detenção antes do julgamento e os efeitos perniciosos que ela implica (MAIA NETO, Cândido Furtado, in ?O Promotor de Justiça e os Direitos Humanos?, ed. Juruá 2003, Curitiba-PR)

Note-se que o réu no processo administrativo na ou ação cível, não é tão estigmatizado ou não têm no mesmo grau denegrida sua imagem ou pessoa, pública ou privada, como acontece na ação penal.

Os chamados ?juizes paralelos?, opinião pública ou publicada, formam a convicção antecipada de culpabilidade, os movimentos populares e a sociedade em geral acabam por aceitar as notícias muitas vezes deturpadas da verdade, fazendo com que algumas acusações se transformem em condenações anunciadas.

Não se pode confundir antecedentes criminais (art. 59 CP) com o instituto da reincidência (art. 61, inc. I CP). A reincidência deve ser levada em consideração quando entre a primeira condenação transita em julgado e a segunda não ultrapassar o tempo de 5 anos (art. 64, I CP). Raul Zaffaroni manifesta-se inclusive sobre a reincidência específica e não a genérica, e que o instituto da reincidência não se adapta as linhas de um Estado de Direito ou de uma administração de justiça verdadeiramente democrática, porque configura bis in idem, por dupla penalização, com aumento de pena de um fato anterior já transitado em julgado. Atenta a reincidência contra a soberania da decisão judicial firme, porque é agregado um plus ao quantum anterior, lançado na causa posterior.

Os antecedentes criminais e a conduta delitiva devem ser aferidos no conjunto das circunstâncias fáticas e dos elementos probatórios, juntados aos Autos, relevantes para a aplicação da pena, como para a liberdade provisória, como disposto nos arts 323 e 310, parágrafo único do Código de Processo Penal, à luz do inciso lxvi do art. 5.º da lex fundamentalis. A liberdade é a regra geral, o Estado deve respeito ao ius libertatis, o direito de ir e vir dos cidadãos.

No Estado Democrático de Direito quem acusa deve provar, o encargo probatório ou o onus probandi é do Ministério Público, e não do réu, do acusado ou processado. Se o órgão do Estado deseja a prisão do indiciado-réu, este deve juntar nos autos as certidões de antecedentes.

Vejamos o que reza a Constituição Federal, a este respeito, no artigo 5.º das garantias fundamentais: ?todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular…? (inc. XXXIII); ?são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas:…a obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal? (inc. XXXIV), ainda ?a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais? (inc. XLI). Portanto, é simples o entendimento à luz dos dispositivos constitucionais ou cláusulas pétreas, em destaque. É direito dos acusados mantidos presos, que o Estado junte no processo crime todas as informações, noticias e certidões criminais referente a sua pessoa, para provar e justificar a necessidade da manutenção da detenção. De outro lado, incumbe ao Ministério Público a tutela dos interesses indisponíveis da cidadania, sem dúvida alguma, os acusados possuem o interesse maior que o Estado assegure na pratica a presunção de inocência, como garantia judicial obrigatória.

Configura ilegalidade, abuso de poder ou de autoridade qualquer atentado à liberdade de locomoção; à incolumidade física do indivíduo (Lei n.º 4.898/65, art. 3.º, letras ?a? e ?i?). Com certeza que a falta de juntada imediata pelo Estado de certidão de antecedentes criminais nos autos, que dá causa a manutenção da prisão ou retarda a soltura do acusado, constitui desrespeito ao direito de locomoção — ius libertis -. Qualquer forma ou espécie de confinamento e restrição da liberdade, expõe em risco a incolumidade física do indivíduo, mais ainda se for ele primário, jovem-adulto ou se estiver encarcerado em estabelecimento penal superlotado de péssimas condições de funcionamento, o que é fato para a maioria dos presídios e cadeias públicas do Brasil.

Até poder-se-ia falar em litigância de má-fé ou de denunciação caluniosa, quando a acusação e a prisão é mantida sob argumento de necessidade, e o Estado não fornece o elemento probatório, retardando, procrastinando ou faltando com a verdade. A juntada de certidão de antecedentes criminais é medida ex officio urgente, quando trata-se de pessoa presa, deve acompanhar e ser parte do Auto de prisão em flagrante ou de qualquer decisão judicial de prisão, especialmente da provisória. O mesmo deve acontecer, para acompanhar a promoção ministerial de pedido de prisão ou de negativa de soltura provisória.

Presunção de inocência diz respeito ao Estado Democrático de Direito, presunção de culpabilidade se vincula aos regimes repressivos e ditatoriais, já a presunção de periculosidade tem origem na doutrina ultrapassada da escola positivista do século XVIII, conhecida também por criminologia clínica ou lombrosiana, o que gera a culpabilidade de autor, na espécie de tipos de homens ?disciplinados? e ?indisciplinados?, restando injusta e discriminatória a manutenção de prisão, por estes últimos conceitos e expressões subjetivas.

O cidadão acusado pela prática de um ilícito não têm o dever de juntar, nos autos, informações a respeito de sua pessoa, porque até prova em contrário – até sentença firme -, presume-se a sua inocência, esta é a regra geral (MAIA NETO, Cândido Furtado, in ?Presunção de Inocência e os Direitos Humanos -Justiça Penal e Devido Processo no Estado Democrático.? Revista Jurídica Consulex, Bsb-DF, ano VIII, no.171, 29 de fevereiro/2004).

É desgastante, infamante e quase impossível para o cidadão acusado e preso, fazer seu defensor buscar inúmeras certidões, em todo o território nacional, para provar a presunção de sua inocência, ainda que já se encontre assegurada na lex fundamentalis e nos instrumentos de Direitos Humanos de aceitação universal. O mais lamentável se dá quando o cidadão dispõe de todos os documentos e certidões necessárias para a prova de sua inocência – presumida legalmente a nível constitucional – o Ministério Público e o Poder Judiciário continuam afirmando que não serve ou não basta, e que deve continuar preso por carência de outras provas. E se a maioria dos vulneráveis do sistema penal – na expressão do professor Raúl Zaffaroni – é constituída de pobres e de desfavorecidos economicamente, fica muito mais difícil e complicado a prova da inocência e de conseguir documentos. Com a vigência da lei n.º 1.050/60, referente a assistência judiciária gratuita aos necessitados para contratar defensor particular, é maior a incumbência do Estado de juntar na ação penal as certidões de antecedentes, visto que para o Estado-Ministerial não há custo algum neste sentido. Por sua vez, a Lei n.º 8.625/93, Orgânica Nacional do Ministério Público, expressa que o agente do Parquet no exercício de suas funções requisita – ordena – informações e documentos de autoridades, órgãos e entidades públicas federais, estaduais e municipais, vinculadas a qualquer um dos Poderes; sendo cumpridas gratuitamente tais requisições (art. 26, inc. I, letra ?b? e § 3.º).

Não há no Brasil um órgão estatal oficial até os dias de hoje, que concentre informações gerais de todos os cidadãos brasileiros e estrangeiros que vivem e trabalham em solo pátrio. É preciso um Instituto Nacional de Identificação, não o que já existe apenas em denominação, mas que informe e detenha efetivamente condições de prestar serviço ao Poder Judiciário e ao Ministério Público brasileiro, através de apenas com um documento.

Veja-se, o Estado através desta praxis forense, em não reconhecer o seu encargo e o contido na Constituição federal, com relação a presunção de inocência da cidadania, acaba gerando o criando a reincidência de fato e de direito.

A reabilitação instituto previsto no código penal (art. 93/59) teria que ser automática e não constar a exigência, também, para o cidadão, após 2 anos do cumprimento da pena, requerer juntando antecedentes criminais, para comprovar sua não reincidência. Se os órgãos públicos estivessem definitivamente o controle dos apenados, se o sistema judicial fosse integrado e se existisse uma central de informação nacional, é obvio que inclusão social dos ex-presidiários –  readaptação, reintegração e ressocialização seria mais eficiente.

Se o direito penal democrático é objetivo não pode trabalhar com subjetividade – direito penal de autor – mas sim como precisões, tipos fechados e certos, em respeito ao princípio da taxatividade através da culpa ou responsabilidade comprovada, não atua o direito penal de ato em base a indícios, evidências ou presunções de culpabilidade. E as interpretações da norma, no direito penal democrático são sempre favoráveis ao réu (MAIA NETO, Cândido Furtado, in ??Jurisprudência Criminal Democrática? – Correta Aplicação da Hermenêutica, dos Princípios de Direitos Humanos e da Teoria Geral do Ordenamento Jurídico à luz do Garantismo Penal: – Revista Prática Jurídica, ed. Consulex, Bsb-DF, ano III, n.º 23, 29 de fevereiro/2004; – Revista Jurídica UDC Faculdade de Direito/Foz do Iguaçu; Vol. 1; N.º 1; Editora Juruá; Curitiba/2004).

Ressalte-se. Somente é possível condenação com provas concretas e absolutas. Na dúvida prevalecem os princípios sine culpa sine poena e in dubio pro reo. Assim deveria trilhar o direito penal democrático-liberal-humanitário pátrio vigente, mas não efetivado. O búsilis para a solução da culpabilidade sempre resulta em favor do agente.

Se na instrução criminal, ante o princípio do contraditório, não restou demonstrado com certeza a imputação produzida na fase investigatória ou instrutória, o acusado não pode ser declarado culpado em base a probabilidades. O veredicto de culpabilidade deve ser certo e verdadeiro; portanto, a probabilidade é subjetiva, se refere a um evento ocorrido no passado, significando que nossas informações (provas constantes nos autos) são incompletas, razão pela qual desautoriza o juízo de valor contra o agente, vez que os fundamentos são parciais, não totais e nem absolutos. O que logicamente é provável está acompanhado de dúvidas, de crença e coroado de inverdade. A probabilidade no procedimento criminal atropela a certeza e conduz o juízo a injustiças. A opinião interpretada por uma suspeita não é correta, tem como base a evidência que não produziu suficiente informação para a condenação.

Segundo já decidiu o Pretório Excelso a prova indiciária, produzida durante a investigação policial, não é capaz de sustentar nenhuma condenação pela carência do contraditório e da ampla defesa, como princípios assegurados constitucionalmente e garantia fundamental individual da cidadania (art. 5.º inc. LV CF).

Não há que se falar em prova concreta quanto ao dolo (conhecimento e intencionalidade de fraudar a lei) ou culpa do sujeito ativo, na forma dos incisos i e ii do art. 18, respectivamente. A constituição do tipo penal conforme adoção da vigente sistemática criminal pátria (Lei n.º 7.209/84), exige para a configuração do delito elementos de acordo com a teoria finalista da ação.

Quando a presunção de inocência não é refutada significa que o Estado não conseguiu exercer o onus probandi que lhe é incumbido.

Não é, ademais, correto falar em razoabilidade ou em interesse público para se presumir a culpa ou para se manter um cidadão na prisão. Se o ius libertatis não for respeitado como um bem maior, estaremos vivendo no Estado de Polícia ou Nazista, na expressão do Min. Edson Vidigal (STJ).

Inexiste prisão razoável – definitiva ou provisória -, o encarceramento sempre será cruel e indigno, é incompatível com a natureza do homem, ele possui a necessidade de viver em liberdade, só ela, a liberdade, pode construir a personalidade e o bom caráter. A vida reclusa ou intra murus produz o processo negativo da reincidência e gera a marginalização social. O contido no inciso LXXVIII do art. 5.º da CF, incluído pela Emenda Constitucional 45/2004, refere-se a duração do processo, como prazo razoável para terminar a acusação, e jamais a um tempo razoável de prisão.

Concluímos dizendo que nas certidões de antecedentes criminais quando requisitadas ou requeridas pelas partes, que não constam trânsito de sentença penal condenatória não devem ser expedidas pelos cartórios respectivos, somente informações com sentença firme. Quem têm a incumbência de juntar nos Autos as certidões de antecedentes criminais é o Estado-Acusação, e não o cidadão. É preciso também ser montado no sistema de administração criminal brasileira, um cadastro nacional único de antecedentes criminais, seja para efeito de justiça federal ou estadual. Estas propostas são básicas e indispensáveis para a efetivação na prática do tão almejado e necessitado Estado Democrático de Direito, desde 1988.

Cândido Furtado Maia Neto é promotor de Justiça de Foz do Iguaçu-PR. Pós doutor em Direito. Mestre em Ciências Penais e Criminológicas. Expert em Direitos Humanos (Consultor Internacional das Nações Unidas Missão Minugua 1995-96). Ex-secretário de Justiça e Segurança Pública do Ministério da Justiça (1989/90). Professor Universitário de pós-graduação (especialização e mestrado). Associado ao Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (Conpedi). Membro da Associação Internacional de Direito Penal (AIDP). Conferencista internacional e autor de várias obras jurídicas publicadas no Brasil e no exterior. E-mail: candidomaia@uol.com.br

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